A falta de saneamento básico no Brasil não é apenas uma questão de infraestrutura, mas de saúde pública. Em três anos (2021 a 2023), foi registrado 1 milhão de internações em decorrência de déficits na coleta de esgoto e tratamento de água, que causaram um impacto de R$ 2,2 bilhões no Sistema Único de Saúde (SUS). Os dados fazem parte de um estudo da Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon Sindcon) e, segundo a entidade, caso a reforma tributária em debate no Congresso Nacional aumente a carga de impostos do setor, a desigualdade sanitária pode avançar e dificilmente o país reverterá esses impactos sobre a saúde brasileira.
Nos últimos anos, sobretudo depois do Marco Regulatório do Saneamento Público, em 2020, a cobertura do setor avançou. No entanto, investimentos ainda são necessários, já que quase metade (45%) da população ainda não tem acesso a esgoto e mais de 15%, à água tratada. Segundo outro estudo, do Instituto Trata Brasil, os maiores déficits de cobertura estão no Norte, onde o sistema de esgoto é acessível para apenas 7,5% da população; e no Centro-Oeste, onde essa taxa de cobertura está em 24,7%.
Crianças mais vulneráveis
As crianças brasileiras são as mais vulneráveis a doenças causadas pela falta de saneamento, com mais de 300 mil internações anuais. Isso afeta diretamente o desenvolvimento e gera repercussões durante toda a vida, com desdobramentos, inclusive, sobre os estudos e a renda na fase adulta. De acordo com a Abcon Sindcon, 10,7% dos óbitos em internações hospitalares são causados por doenças ligadas à ausência de saneamento. Em muitas comunidades, segundo o Trata Brasil, crianças acabam impedidas de frequentar a escola com regularidade por conta de doenças repetitivas, resultando em um atraso educacional de cerca de 1,8 ano aos 19 anos de idade.
Ilana Ferreira, superintendente técnica da Abcon Sindcon, alerta que a população brasileira ainda é muito impactada por doenças que poderiam ser facilmente erradicadas. “É preocupante e devastador. São doenças que deveriam deixar de existir”, lamenta. “Elas afetam os mais vulneráveis. Estudos mostram que, entre crianças de 1 a 4 anos, há uma alta incidência de internações por doenças associadas à falta de saneamento, como a diarreia”, explica.
A executiva acredita que o Congresso entenderá a importância de equiparar o saneamento à saúde na reforma tributária. “Não faz sentido que um setor essencial como o saneamento tenha o mesmo tratamento de setores como o de armas. Para cada dólar investido em saneamento, economizamos US$ 5 em saúde, segundo a Organização Mundial da Saúde. Economicamente é muito mais racional permitir que o setor continue a investir para reduzir doenças no futuro”, pondera.
Acesse o abaixo-assinado da Abcon Sindcon contra aumento da conta de água.
A Região Norte, onde as taxas de cobertura de saneamento básico são notoriamente mais baixas, apresenta uma incidência de 45,43 casos de diarreia por mil crianças, mais que o dobro da média nacional, de 18,48. Esse contraste é um reflexo da desigualdade de infraestrutura entre as regiões e evidencia como a ausência desse tipo de serviço afeta gravemente a saúde infantil. Em regiões como o Sudeste, com melhores índices de acesso, a incidência cai para 10,97, o que reforça a ideia de que o saneamento é essencial para reduzir doenças infecciosas e que está diretamente ligado à saúde pública.
“O que nós estamos discutindo é o futuro da próxima geração”, alerta a presidente executiva do Instituto Trata Brasil, Luana Pretto. “De 0 a 2 anos, quando não há acesso a saneamento, há um atraso muito grande no desenvolvimento físico, intelectual, neurológico e cognitivo dessa criança”, afirma. Ela relata ainda que aquelas sem acesso a saneamento terão um número maior de internações e chegam à avaliação do quinto ano escolar sem conseguir ver horas no relógio, sem entender ironia e sem capacidade sequer para calcular troco. A renda média no futuro, segundo a executiva, pode ficar R$ 1,2 mil menor quando comparada a de quem teve acesso. “Saneamento é dar o básico para que essas crianças possam se desenvolver e para que tenham um futuro melhor”, argumenta.
Sem saneamento, sem comida
Durante uma recente visita à cidade de São Paulo, o médico Nelson Arns Neumann, diretor da Pastoral da Criança, viu de perto uma realidade que o impactou profundamente. Ao caminhar por uma comunidade pobre, ele compartilhou uma experiência que revela as condições extremas que muitos brasileiros enfrentam diariamente.
“Quando a gente aparece lá, o pessoal vem normalmente pedir cesta básica ou ajuda com algum remédio”, conta o médico. Porém, dessa vez, a resposta foi diferente. “A primeira coisa que me falaram naquela comunidade foi: não adianta cesta básica, não queremos. Não temos água para cozinhar, não temos água para lavar as mãos”, relata.
Para o médico, essa falta de recursos básicos atinge um ponto de absoluta indignidade, em que o essencial para viver se torna inacessível. “É como se a falta de dignidade fosse absoluta. A pessoa não consegue nem fazer a própria comida quando tem o alimento”, desabafa Neumann. “Na hora que você fica sem comida, sem a possibilidade de viver bem, sem higiene, não tem como você não perder a saúde.”
Ele explica que, sem acesso à alimentação adequada e a condições mínimas de higiene, a saúde se deteriora rapidamente. “Nosso organismo precisa de um ambiente saudável, e não há hospital no mundo que consiga salvar alguém com a imunidade muito baixa, sem nutrição adequada”, argumenta.
Para ele, a saúde de uma comunidade depende muito mais do que de apenas assistência médica: é sobre garantir um ambiente com condições básicas de saneamento e livre de pragas e doenças que atualmente são totalmente evitáveis. “Esse processo de ter saúde, de viver em um ambiente minimamente saudável, é essencial para combater e minimizar as doenças”, observa Neumann.
Por isso, segundo o médico, saneamento é saúde e seria completamente injusto para com a sociedade o setor ter um aumento de carga tributária que dificultasse o acesso da população mais pobre ao sistema e inviabilizasse investimentos, sobretudo em áreas mais carentes.
Fonte: Valor Econômico