Quatro anos após a publicação do novo marco legal do saneamento básico, o mercado de água e esgoto viu um aumento relevante das concessões e privatização do setor. Porém, a perspectiva sobre a universalização dos serviços até 2033 é baixa e ainda há uma série de desafios a serem vencidos para levar investimentos às áreas mais carentes do país, segundo especialistas da área.
Desde julho de 2020 até maio deste ano, foram realizados 45 leilões de concessões de água e esgoto, nos quais foram contratados R$ 69,2 bilhões de novos investimentos. Além dos contratos firmados, estão em estruturação outros 43projetos, com potencial de gerar outros R$ 105 bilhões em novas obras, segundo dados da Abcon (Associação Nacional das Concessionárias Privadas de Água e Esgoto).
“Hoje há um novo ciclo de leilões que está sendo estruturado. O setor privado tem apetite para diferentes tipos de concessões e PPPs [Parcerias Público-Privadas]”,afirma Christianne Dias, diretora-executiva da entidade. Em 2024, já estão agendadas duas licitações de grande porte, em Sergipe e no Piauí.
Para Rafael Vanzella, sócio do Machado Meyer, a perspectiva para os próximos leilõesé de concorrência intensa e outorgas elevadas. “Temos visto um interesse alto pelo mercado e uma preocupação de compor consórcios capazes de assegurar ofertas mais agressivas”, diz ele.
Além das concessões, o novo marco abriu caminho para duas privatizações de estatais, da Corsan, no Rio Grande do Sul, e da Sabesp, em São Paulo. Nos dois casos, houve apenas um proponente: na venda da empresa gaúcha, a compradora foi um consórcio liderado pela Aegea. Já a privatização da Sabesp, feita por meio de oferta de ações, deverá ser liquidada no dia 22 deste mês. A Equatorial deverá se tornar sócia de referência da empresa, com 15% das ações.
Se de um lado o setor privado ganhou espaço em saneamento – o que era um dos objetivos da lei -, de outro, ainda há dúvidas sobre o avanço da universalização nos próximos anos. Especialistas apontam uma preocupação principalmente em relação às zonas mais precárias do país.
“O novo marco não traz solução para os locais onde o déficit é maior, que são as áreas rurais, as periferias das grandes cidades e as prefeituras endividadas e pequenas. O conceito de universalização da lei deixa de fora muitas dessas áreas que não fazem parte de contratos”, afirma Gesmar Rosa dos Santos, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Para Marussia Whately, diretora-executiva do IAS (Instituto Água e Saneamento), essa é uma das lacunas do novo marco. “A tendência é que em 2033 haverá um avanço no acesso dessas regiões que estão sendo objeto de concessões, mas que nãonecessariamente são as regiões distantes, as áreas rurais, onde está a população que mais precisa”, diz.
Hoje, além de áreas rurais e precárias que ficaram de fora da maior parte das concessões regionais, a Abcon mapeou 614 municípios que não têm contratos regulares de prestação dos serviços. Tratam-se de cidades atendidas por estatais, mas que não comprovaram capacidade econômico-financeira para fazer a universalização dos serviços – ou seja, onde não há um plano de investimentos traçado. Dentre esses municípios, 80% são de pequeno porte, com menos de 20 mil habitantes.
Para Vanzella, a solução para esses locais deverá passar pela discussão de subsídios dos governos, para dar viabilidade a essas operações, seja por meio de PPPs ou outros modelos de prestação. Santos, do Ipea, defende que é preciso garantir acessoa recursos federais para que essas prefeituras possam realizar os investimentos. Ele avalia que a lei falha ao, pelo contrário, penalizar e restringir a liberação de verbas às cidades que estão irregulares.
Outra lacuna relevante deixada pela lei, segundo Whately, é a ausência de um sistema nacional de informações sobre saneamento confiável – algo que estava previsto na legislação, mas que não foi implementado. “Hoje não há indicadores atualizados que permitam dizer onde está se avançando. Em um Estado se usa um dado, em outro Estado o cálculo é diferente. Seria importante padronizar e acompanhar os dados, porque não adianta esperarmos chegar em 2033 paraconstatar que não deu certo”, diz ela.
Do ponto de vista de segurança regulatória, a percepção no setor é que há uma maior estabilidade, após idas e vindas nos últimos anos. “Hoje temos um momento de mais calmaria e consolidação dos decretos regulamentadores”, afirma Dias, da Abcon.
As disputas entre o setor privado e o público, que marcaram a aprovação e a implementação do novo marco legal, também vivem hoje uma fase de “pacificação”, segundo Percy Soares Neto, ex-diretor-executivo da Abcon e sócio da consultoria Ikigai.
“O mercado operador viu que não adianta brigar e entendeu que com a regularização dos contratos das estatais haverá mais PPPs. Isso foi fator chave na pacificação do setor de saneamento e na retomada dos investimentos. Se continuasse a disputa, a incerteza seria a pior coisa para o mercado”, diz ele.
Apesar da maior estabilidade ter representado um avanço para os operadores de saneamento já presentes no país, Vanzella avalia que o novo marco legal ainda não foi capaz de promover a transformação que era aguardada por alguns investidores que não atuam no segmento de água e esgoto. “Para novos entrantes acredito que essas melhorias ainda não se materializaram. Não houve piora, mas também não aconteceram os avanços esperados”, diz.
FONTE: Valor Econômico