A expectativa é que grande parte delas percam contratos, por falta de capacidade econômico-financeira para universalizar os serviços

Ainda é incerto o futuro das estatais de água e esgoto que não atingirem os requisitos mínimos da nova lei do saneamento. Até o fim deste mês, grande parte delas deverá ter decretado o fim de seus contratos, por falta de capacidade econômico-financeira para universalizar os serviços. Porém, ainda há muitas lacunas no processo, o que abre margem para questionamentos judiciais, brechas e disputas que, na prática, podem atrasar investimentos.

Sete companhias estaduais nem sequer entregaram às agências reguladoras os documentos que atestam sua capacidade financeira, uma exigência no novo marco legal. É o caso de empresas no Acre, Amazonas, Maranhão, Pará, Piauí, Roraima e Tocantins.

Outras estatais enviaram parcialmente, deixando de fora cidades importantes. Por exemplo, a Cagepa (Companhia de Água e Esgotos da Paraíba) não entregou a demonstração de João Pessoa. A Embasa (Empresa Baiana de Águas e Saneamento), que já operava Salvador via contrato precário, tampouco incluiu a capital.

Em tese, isso significa o fim dos contratos. Sem a entrega dos documentos, estes já são considerados irregulares pelo governo. Porém, na prática, como se tratam de serviços essenciais que não podem ser cortados, há dúvidas sobre como (e se) a transição será feita.

A nova lei definiu que o serviço de água e esgoto precisa ser universalizado até 2033 (2040, em alguns casos) e que todas as companhias teriam que comprovar ter fôlego financeiro para fazer os investimentos necessários. Os critérios para isso foram definidos em decreto. As empresas, públicas e privadas, tiveram até 31 de dezembro para entregar os documentos aos órgãos reguladores locais, que, por sua vez, têm até 31 de março para concluir a análise.

No entanto, muitas incertezas vieram à tona nas últimas semanas. A começar pelo atendimento do prazo. “As agências terão dificuldade. É uma avaliação complexa, envolve divergências sobre parâmetros contábeis”, afirma Fernando Vernalha, do Vernalha Pereira Advogados. Questionado, o governo nega qualquer possibilidade de flexibilização.

No setor privado, a preocupação é o “dia seguinte”, ou seja, o que acontece uma vez que a agência determina que uma empresa não atingiu os requisitos. O temor é que, na prática, não ocorra nada. “Sem consequências, há risco de as coisas seguirem como estão”, avalia Percy Soares Neto, diretor-executivo da Abcon (Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto). A entidade deverá propor ao governo uma regulamentação adicional à lei, para incluir essas consequências.

Os ministérios da Economia e do Desenvolvimento Regional afirmam que a extinção dos contratos irregulares ficará a cargo dos titulares do serviço (as prefeituras), aos quais caberá avaliar alternativas e tomar providências.

Para Renato Kloss, do Vella Pugliese Buosi e Guidoni Advogados, será importante a atuação de órgãos de controle, como tribunais de contas e Ministério Público, para cobrar a regularização – por exemplo, com licitação.

Para as empresas públicas, esse “dia seguinte” também envolve incertezas. Primeiro, porque decisões negativas das agências certamente serão questionadas.

Para Gustavo Magalhães, sócio do Fialho Salles Advogados, há um temor de que o volume de “reprovações” seja alto demais, o que pode dar força à tese de que os critérios estipulados pelo governo foram duros demais. Nesta lógica, o problema não seriam as empresas que não atingiram as exigências, mas a régua que teria sido mal colocada. “Uma posição muito rigorosa pode levar a uma corrida de judicialização e pedidos de invalidação do decreto, pelo princípio da razoabilidade.”

O Ministério da Economia defende que os critérios são adequados. “Trata-se de demonstração mínima de saúde financeira por meio de indicadores usuais. São exigências básicas”, afirmou.

Outro imbróglio será a indenização que cidades terão que pagar às estatais, no caso de encerramento do contrato, pelos investimentos não amortizados.

A ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico), que vai regulamentar o cálculo do ressarcimento, diz que a norma sobre o tema deverá ir a consulta pública até junho. Ainda assim, a expectativa no setor é que haverá divergências em torno do valor.

Há também preocupação quanto à capacidade das prefeituras de fazer o pagamento, avalia Vernalha. “Há arranjos possíveis, como atrelar a outorga da concessão à indenização. Porém, não é garantido que todos os municípios vão optar pelo leilão. E nem todos são atrativos a ponto de gerar uma outorga relevante”, diz ele. Como, pela lei, o ressarcimento precisa ser anterior à ruptura, a situação pode gerar um impasse para o fim do contrato.

Diversos outros pontos são colocados como prováveis objetos de judicialização. Um deles é a proibição, pelo decreto, de que os municípios prorroguem os contratos com estatais como forma de reequilíbrio, o que levou à inviabilidade de muitas operações.

Outra brecha que as estatais tentarão explorar é a possibilidade de as companhias continuarem prestando o serviço a partir dos blocos regionais. A ideia é que o controle acionário das empresas estaduais seja transferido à microrregião. Assim, a operação passaria a ser direta e não estaria mais sujeita às exigências econômicas da nova lei.

Esse tem sido o entendimento da companhia de Roraima, que diz que não entregou os documentos à agência reguladora por não estar sujeita à necessidade de comprovação. Outras estatais estudam seguir esse caminho – entre elas, possivelmente, a Cagepa.

Procuradas, as companhias do Maranhão e do Piauí dizem que estão fazendo estudos e tomando medidas para se adequar à lei. O Acre afirma que busca alternativas junto à União para viabilizar a concessão das 21 cidades operadas pela estatal, já que a prefeitura da capital Rio Branco não quis compor o bloco regional e, com isso, tornou a licitação do Estado inviável. As estatais do Amazonas, Pará e Tocantins (a ATS) não responderam até o momento.

Fonte: Valor Econômico