A possibilidade de as estatais voltarem a ter autorização para renovar contratos sem licitação no âmbito do novo marco legal do saneamento é vista com maus olhos pelo setor privado, embora não seja considerada um obstáculo intransponível para futuros investimentos. O presidente Jair Bolsonaro vetou trecho do projeto aprovado no Congresso que permitia às estatais renovarem seus contratos sem licitação por mais 30 anos, um prazo de transição para elas, já que a nova lei proíbe contratações do tipo.

Apesar da surpresa, o veto foi bem recebido por investidores e pelo setor privado porque viabilizaria, logo de saída, maior abertura do mercado à concorrência, mas desagradou congressistas, e o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), já sinalizou que parlamentares devem tender a se articular para derrubar o veto. Para tentar evitar uma derrota, estaria em estudo pelo governo, segundo reportagem do jornal “Folha de S.Paulo” de ontem, propor às estatais a prorrogação por 20 anos.

“Estamos prontos para qualquer cenário”, afirma Percy Soares Neto, diretor-executivo da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon). Tecnicamente, porém, ele defende o veto. “Houve um acordo político [para manter a renovação], a gente acompanhou e, como associação e operadores, cabe-nos respeitar. Mas, formalmente, o veto do presidente é muito justificado, a Constituição diz que não deveriam existir processos sem licitação”, afirma.

Para especialistas e agentes do setor, a alteração em estudo pelo governo não traria maior contribuição para ampliar investimentos privados do que a proposta já aprovada no Congresso. “Não muda absolutamente nada, é só para falar que negociou. Não dava para esperar 30 anos e não dá para esperar 20, é trocar seis por meia dúzia”, diz Venilton Tadini, presidente-executivo da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib).

Especialistas reconhecem que, mesmo com a renovação, os investimentos privados não seriam interditados. Apesar de a prorrogação desagradar, existe certa confiança no novo processo, que exigirá de todas as empresas interessadas, incluindo estatais, comprovação de capacidade financeira para investir e universalizar o acesso a água e esgoto no prazo previsto.

“Não acreditamos que o veto ao artigo 16 seja significativo para as empresas privadas aumentarem sua participação de mercado”, escreveu a equipe do banco UBS em relatório. “Se uma empresa não conseguir certificar [sua capacidade financeira], perderá seu contrato de concessão. Na nossa visão, esse poderia ser o destino de muitas empresas estatais no Brasil”, afirmam. Nesse caso, dizem, estatais poderiam ser privatizadas ou haveria espaço para parcerias público-privadas.

Cláudio Frischtak, presidente da consultoria Inter.B, concorda com as possibilidades, mas pondera que tudo dependerá do decreto definindo a metodologia de comprovação econômica-financeira das companhias, que ainda não foi publicado.

“Estamos aguardando. Quanto mais cedo ele sair e esclarecer como será, melhor. É fundamental saber as bases, os indicadores e parâmetros e o tipo de comprovação que as empresas terão de demonstrar. É muito importante que o decreto não seja leniente com as companhias, sejam públicas, sejam privadas, e também que exija alguma validação de instituições financeiras e de rating.”

Nada disso invalida, porém, a necessidade de promover competição, na linha do que propõe o veto presidencial, segundo Frischtak. “É imperativo o Brasil sair do século XIX no saneamento básico e a única forma de fazer isso é impor a data-limite de universalização do serviço, com a comprovação de que cada contratado tem capacidade para isso, e introduzir competição. É muito 30 anos, 20 ou 10. Um período máximo de transição seria de três anos”, afirma.

Segundo Soares Neto, da Abcon, as empresas que não tiverem capacidade de fazer os investimentos necessários “ficarão no meio do caminho”. Ele pondera, no entanto, que o critério de “saúde financeira” não basta. “Precisa ter dinheiro, mas precisa saber o que fazer com ele, como gastar bem. O decreto foca a capacidade financeira, mas é preciso atenção também para a capacidade técnica, e aí são os editais que trarão esse equilíbrio”, diz.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, afirmou ontem acreditar que a maioria dos parlamentares votará pela derrubada do veto, mesmo que o governo apresente uma proposta alternativa. Maia reconheceu que o veto faz sentido do ponto de vista técnico, de acelerar investimentos privados, mas disse que houve acordo político para incluir essa regra, sem a qual o marco nem sequer teria sido aprovado.

“Se tivesse voto, eu não teria incluído o artigo que foi vetado. Nós participamos do acordo com o governador da Bahia, Rui Costa, e outros governadores”, disse. “A impressão que me dá é que todos no Parlamento vão trabalhar para manter o acordo. O governo tem o direito de vetar, mas, se não tivesse o acordo, o texto nem chegaria para sanção”, afirmou.

Para a Abcon, se o veto cair, é preciso rever a regra que limita subconcessões de fatia do serviços a 25% do valor do contrato. “A partir do momento em que eu permito o fechamento do mercado por mais 20 ou 30 anos, tenho que criar alternativas para que a própria estatal busque parcerias pelos meios que já existem”, diz Soares Neto.

Por esse e outros impasses – estatais ameaçam ir à Justiça se o veto não for derrubado, por exemplo, como mostrou reportagem do Valor -, Frischtak, da Inter.B, diz que a situação “é um jogo que está sendo jogado, mas infelizmente ainda não acabou”. “Tem ação no STF [Supremo Tribunal Federal] questionando a lei, sabemos que haverá judicialização. Temos que aguardas as discussões dos vetos, os decretos, então muita coisa ainda não está resolvida”, afirma. E, ainda que a estrutura regulatória avance, “não é o fato de mudar a ‘chave’ que amanhã deságua investimento e gera efeito no PIB”, diz Tadini, da Abdib.

Fonte: Valor Econômico