Com a meta de universalizar o acesso ao saneamento básico até 2033, o Brasil precisa investir R$ 81,8 bilhões por ano para alcançar esse objetivo. O setor, no entanto, tem enfrentado dificuldades para chegar a esse volume de recursos, um quadro que pode se agravar ainda mais diante da reforma tributária em análise no Congresso Nacional e da possibilidade
Projeções da Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon Sindcon) mostram que os investimentos do setor podem ser comprometidos com uma queda em 26% em volume de recursos, caso o texto da reforma se mantenha como está atualmente.
A diretora-executiva da Abcon Sindcon, Christianne Dias, afirma que o mercado tem observado a entrada de novos investidores e o aumento do interesse nos leilões, o que reflete, segundo ela, o apetite do setor privado por oportunidades de investimento em infraestrutura de saneamento. No entanto, pondera que, para garantir a continuidade dessa procura, se faz necessário um ambiente de negócios estável e sem risco jurídico.
“É importante que o investidor veja esse setor com muita estabilidade”, explica. A mudança no sistema tributário em discussão no Legislativo pode aumentar a carga sobre o segmento de 9% para cerca de 27%, o que traria problemas para os contratos em andamento e jogaria dúvidas sobre os projetos em prospecção. Ela defende que, para minimizar os impactos da reforma, o texto deveria garantir neutralidade tributária ao saneamento, equiparando-o à saúde. “Estamos falando de um serviço que é essencial. Então, não estamos falando de luxo. É essencialidade”, argumenta.
Christianne observa ainda que a meta de universalização é um dever legal do setor e que há, inclusive, previsão contratual para os casos de não cumprimento desse marco. “Não é uma meta solta. Ela está na lei e todos os contratos foram aditivados para prever a meta. Se não cumprir, tem consequência”, explica.
De acordo com Ilana Ferreira, superintendente técnica da Abcon Sindcon, a necessidade total de investimentos para alcançar a universalização dentro do prazo está ao redor de R$ 1 trilhão. “A parceria entre o setor público e privado é crucial para a realização desses investimentos.”
Reforma ameaça projetos
A Abcon Sindcon calcula que desde a implementação do novo marco regulatório do setor, em 2020, 55 leilões de saneamento foram realizados, com contratos que preveem investimentos e outorgas de cerca de R$ 216 bilhões. Esses leilões, segundo a entidade, estabeleceram como meta a cobertura de 90% da população com coleta e tratamento de esgoto e 99% com abastecimento de água, como previsto na legislação do setor.
Ainda de acordo com a entidade, o Brasil está entrando em um novo ciclo de projetos de saneamento. Atualmente, 33 estão em estruturação, o que vai alcançar mais de mil municípios: a previsão é gerar investimentos de R$ 100 bilhões. “Ano que vem vai ser de muitos projetos, principalmente focados no Norte e no Nordeste, regiões historicamente carentes de infraestrutura de saneamento”, afirma Ilana. Ela explica que as obras também vão cobrir municípios em Goiás, Espírito Santo e Minas Gerais, onde novas Parcerias Público-Privadas (PPPs) estão em andamento.
Financiamentos
Segundo Nelson Barbosa, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento e atual diretor de planejamento e relações institucionais do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a instituição tem desempenhado um papel essencial no financiamento do setor de saneamento. “O BNDES não atua sozinho”, observa. “Ao contrário, financia os projetos em parceria com bancos comerciais, instituições multilaterais e, sobretudo, com o mercado de capitais.”
Desde o novo marco regulatório do saneamento, aprovado em 2020, o BNDES estruturou 13 projetos, com investimento total de R$ 70 bilhões, no Rio de Janeiro, Alagoas e Ceará, o que beneficiou cerca de 30 milhões de pessoas. “Os investimentos em saneamento são prioritários em razão de seu evidente impacto social e ambiental. Havendo bons projetos, liderados pelo setor público ou pelo setor privado, o banco vai analisá-los, caso a caso, para definir a forma e o tamanho de sua participação”, afirma.
Barbosa relata ainda que o banco, em 2024, promoveu projetos nas regiões Norte e Nordeste, onde se concentram as maiores lacunas de saneamento. “Os novos projetos em estruturação nos estados do Pará, Maranhão, Rondônia, entre outros, devem beneficiar mais de 35 milhões de pessoas e gerar investimentos de cerca de R$ 100 bilhões”, calcula.
Insegurança jurídica
Todos esses investimentos e futuros projetos, no entanto, podem ser impactados negativamente pela reforma tributária. Segundo o economista Rudnei Toneto Junior, professor da Universidade de São Paulo (USP), as mudanças nos impostos do setor, caso o texto não seja alterado no Congresso Nacional, trarão um aumento expressivo na carga tributária, o que vai afetar diretamente as tarifas de água e esgoto e, potencialmente, reduzir a capacidade de investimento das empresas na área.
Atualmente, companhias de saneamento têm isenções específicas, como a exclusão do ICMS e ISS, mas, com a reforma, a alíquota efetiva deve subir para aproximadamente 27%. Esse aumento, nos cálculos do economista, pode ser repassado às tarifas ou absorvido pelas empresas, comprometendo seus excedentes financeiros e reduzindo os recursos próprios disponíveis para novos investimentos.
“Essa pressão tributária poderia dificultar a expansão dos serviços de saneamento, principalmente em regiões menos urbanizadas e de baixa renda, onde o déficit é maior e os custos operacionais são elevados”, afirma. O professor ainda alerta que o aumento da carga tributária no setor pode excluir populações mais vulneráveis ao tornar o serviço inacessível para consumidores de baixa renda ou impedir a expansão da rede.
Ele observa ainda que a reforma vai exigir um reequilíbrio econômico-financeiro nos contratos de saneamento, uma vez que as empresas terão de lidar com diferentes regulamentos e um aumento nas alíquotas tributárias. Com mais de 100 agências reguladoras e diferentes tipos de contrato, o setor, na visão dele, pode enfrentar insegurança jurídica e dificuldades para promover esse reequilíbrio.
Toneto defende que o saneamento deveria receber o mesmo tratamento tributário diferenciado da saúde, dado o impacto positivo que traz à população. Para ele, é contraditório que um setor com tantos benefícios sociais e econômicos seja tributado como qualquer outro, sem considerar suas externalidades positivas, como a redução de internações e doenças relacionadas à falta de saneamento.