Diante da necessidade de quase R$ 1 trilhão em investimentos para uniformizar o acesso ao saneamento básico no Brasil, entidades se mobilizam para impedir que a reforma tributária, em discussão no Congresso Nacional, afaste investidores nacionais e estrangeiros e deixe o sistema em uma crise financeira e jurídica. Durante o evento Reforma Tributária e os Riscos para a Universalização do Saneamento, realizado em Brasília, no último dia 29, especialistas e parlamentares destacaram a necessidade de preservar as condições financeiras do setor, garantindo uma neutralidade tributária, especialmente para não onerar as populações mais vulneráveis.
Ciente dos desdobramentos que podem afetar toda a cadeia de consumo e serviço, o líder do governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues (PT-AP), sinalizou que o governo está disposto a dialogar. “O texto da reforma tributária, conforme veio da Câmara, não está à altura dessa necessidade do Brasil e dos brasileiros”, afirmou o senador. Ele lembrou que as regiões mais pobres e vulneráveis do país, no Norte e no Nordeste, são as que mais precisam de investimento. “Tratar o saneamento básico como saúde pública significa, no debate sobre a reforma, colocar a tributação do saneamento no mesmo patamar em que foi tratada a tributação para a saúde”, defendeu.
Para o senador Eduardo Gomes (PL-TO), governo e oposição têm encontrado um consenso em torno do tema. “O Brasil todo sempre ouviu a lógica de que saneamento é saúde. Investir na qualidade de esgotamento sanitário, no tratamento da água tem impacto direto na saúde e nos gastos com saúde pública”, argumentou.
Gomes é autor de uma emenda que propõe uma redução de até 60% do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) em regiões com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Essa medida tem o objetivo de garantir que áreas carentes de infraestrutura e com condições econômicas menos favoráveis tenham um custo reduzido para acessar serviços essenciais, como o saneamento.
Fernando Marangoni, deputado federal (União-SP), também presente no evento, destacou que não equiparar o setor de saneamento com o de saúde poderia ser considerado até um equívoco, “já que saneamento é saúde”. Sobre o texto atual da reforma tributária, criticou: “Deveríamos estar discutindo como facilitar ao máximo que os investimentos no setor aconteçam, não o contrário”.
Erro histórico
Segundo a Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon Sindcon), a universalização dos serviços de saneamento, além de atender a uma necessidade básica, teria potencial de impacto econômico positivo, podendo elevar o PIB em até 2,7% e gerar cerca de 1,5 milhão de empregos até 2033.
Na visão do presidente do Conselho de Administração da entidade, Roberto Barbuti, o momento em que o texto está no Congresso Nacional permite que o país corrija uma situação que pode vir a se tornar um erro que ele classificou como histórico. “Aprovar o texto como está não é onerar o setor, é onerar a sociedade e os mais vulneráveis”, explicou.
Saneamento é saúde
O executivo argumentou que a relação entre saúde e saneamento básico é direta. E trouxe cálculos que demonstram que, para cada US$ 1 investido em saneamento, há uma economia de US$ 5,50 em saúde pública.
“Investir em saneamento é deixar de onerar os gastos públicos. Os dados do SUS mostram que de 1 milhão de internações nos últimos três anos foram registrados 200 mil óbitos relacionados à falta de saneamento”, afirmou.
Ricardo Soavinski, vice-presidente da Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe), pontuou que o saneamento não é apenas um serviço, mas uma questão de dignidade. “Diante de um desafio crítico como esse, o acesso ao saneamento básico não é apenas um serviço, mas um direito básico essencial e, acima de tudo, uma questão de saúde pública”, reforçou. Ele ponderou que, enquanto outros setores, a exemplo de saúde e itens da cesta básica, têm tratamento tributário diferenciado na proposta de reforma, o saneamento foi prejudicado. “Não é apenas uma questão de número, isso se traduz em famílias que serão penalizadas”, alertou.
De acordo com ele, caso o texto da reforma continue como está, comprometerá o equilíbrio econômico-financeiro das companhias de saneamento. “Com o aumento da carga tributária, as empresas serão obrigadas a ajustar suas tarifas para manter a estabilidade financeira. Isso não apenas elevará os custos para o consumidor, mas poderá também limitar severamente os investimentos necessários para expandir e melhorar a infraestrutura do setor”, observou.
Especialistas em direito tributário argumentaram, durante o evento, que não há impedimento jurídico para equiparar o saneamento à saúde no âmbito tributário. De acordo com esses advogados, a reforma trará desafios adicionais que afetam contratos em andamento, supervisionados por cerca de 100 agências reguladoras. A complexidade regulatória somada ao ajuste de carga tributária, na visão desses especialistas, pode criar dificuldades para o setor cumprir as metas de universalização.
Impactos sociais
Luana Pretto, presidente executiva do Instituto Trata Brasil, apresentou os impactos da falta de saneamento no desenvolvimento infantil e na desigualdade social. “O que estamos discutindo aqui hoje é o futuro da próxima geração”, afirmou, explicando que a ausência de saneamento básico nos primeiros anos de vida traz prejuízos à evolução física, intelectual e cognitiva das crianças.
A executiva mencionou ainda que, no grupo de crianças de 0 a 2 anos sem acesso a saneamento, as taxas de internação por doenças diarreicas são significativamente maiores. “No Brasil, na Região Norte, temos 45 internações por doenças diarreicas em crianças nessa faixa etária para cada mil. Já na Região Sudeste, onde os níveis de saneamento são melhores, esse número cai para quatro a cada mil,” exemplificou.
Para ela, esses dados ilustram o impacto da infraestrutura no futuro de milhares de crianças e como as disparidades entre regiões acabam por moldar oportunidades de vida. “De 0 a 6 anos, quando não há saneamento, essa criança chega ao 5º ano sem saber ver as horas no relógio, calcular um troco ou entender a ironia em uma revista em quadrinhos”, apontou Luana, ao enfatizar as defasagens escolares e os prejuízos que se acumulam com o tempo.