Mesmo após sua publicação, o assunto deve continuar na pauta. O tema é complexo e envolve diversas variáveis que exigirão diálogo estreito entre empresários e governo para construir toda a regulação sobre o tema e evitar brechas jurídicas que possam impactar investimentos

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A publicação do decreto que irá estabelecer os critérios para medir a capacidade econômico-financeira dos operadores públicos de saneamento realizarem investimentos é o primeiro passo para eliminar uma das principais lacunas sobre o novo marco regulatório do setor, sancionado em julho do ano passado. Mas sua publicação não deverá sanar todas as dúvidas. O assunto é complexo e envolve diversas variáveis que exigirão diálogo estreito entre empresários e governo para construir toda a regulação sobre o tema e evitar brechas jurídicas que possam impactar investimentos. 

Por isso, as entidades que representam o setor estão prontas para, assim que ele for publicado, se reunirem, alinharem seus pontos mais importantes e então abrir diálogo com o governo federal para resolver eventuais dúvidas. Essa foi a tônica dos debates do terceiro episódio da websérie “Desafios da Implementação do Novo Marco Legal do Saneamento Básico”, realizado no dia 20 de maio. O evento está disponível no YouTube. (Link aqui: https://www.youtube.com/watch?v=M0xjQZfqUys). A websérie terá seis episódios. (Link aqui: https://conteudo.abconsindcon.com.br/desafios-da-implementacao-do-novo-marco).

O presidente da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib), Venilton Tadini, disse que, assim que o decreto for publicado, será iniciado o diálogo para completar pontos que eventualmente faltarem. “A discussão é complexa e, como pudemos ouvir das apresentações, hoje o decreto não sanará todas as dúvidas e discussões que poderão surgir”, disse. “Ao sair o decreto, vamos fazer uma reunião extraordinária para termos uma posição única das associações”, disse o Rogério Tavares, diretor vice-presidente de Relações Institucionais da Aegea Saneamento e coordenador do Comitê de Recursos Hídricos e Saneamento Básico da Abdib. “A capacidade econômico-financeira das operadoras para fazer os investimentos necessários para alcançar a universalização é um tema fundamental para o setor”, afirmou o presidente do Conselho de Administração da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon) e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Sindcon), Carlos Henrique da Cruz Lima. 

Decreto está avançando, segundo secretário nacional de saneamento

O decreto que irá estabelecer os critérios para medir a capacidade econômico-financeira dos operadores públicos de saneamento está avançando e a metodologia está estruturada, afirmou o Secretário Nacional de Saneamento do Ministério do Desenvolvimento Regional, Pedro Maranhão, na abertura do evento. Maranhão disse que o novo marco regulatório, sancionado pela lei 14.026 de julho de 2020, “já pegou”, e por isso está otimista. “Há leis que pegam e não pegam no Brasil. Essa pegou. Desde o março desse ano, já foram mais de R$ 69 bilhões em investimentos e outorgas”, afirmou, em relação aos leilões de concessão de saneamento básico que contrataram investimentos privados e vão render pagamentos de outorgas aos poderes concedentes. Em relação ao decreto que fixará os critérios para medir a capacidade econômico-financeira dos operadores – ou seja, qual será a “régua de sobrevivência” das estatais –, Maranhão disse que o texto está avançando e está bem estruturado, mas que ainda não pode oferecer detalhes publicamente.

“Há uma preocupação do Ministério da Casa Civil sobre esse tema sensível para que não haja brechas para questionamentos jurídicos, mas a parte do método está estruturada”, destacou. Pela lei, os operadores poderão perder seus contratos caso não consigam provar que têm meios para fazer os investimentos necessários à universalização. 

O decreto, que deveria ter sido publicado em até 90 dias após a sanção da lei, ou seja, até outubro de 2020, definirá os critérios para garantir que as operadoras cumpram com as metas de universalização dos serviços de água e esgoto até 31 de dezembro de 2033 – ou até 2040, em casos especiais.

Minuta do decreto que circulou na imprensa nos últimos dias apontou que o documento faz referência a indicadores “amplamente utilizados pelo mercado para análise de investimentos e de crédito, diagnosticando a situação patrimonial e de resultado das companhias analisadas. Tais indicadores podem ser classificados da seguinte forma: endividamento, rentabilidade, eficiência operacional e caixa.” Segundo a minuta, a avaliação da capacidade econômico-financeira das operadoras seria de responsabilidade das agências reguladoras do setor de saneamento. O prazo final para o processo administrativo para análise dos projetos seria até 31 de março de 2022.

O Secretário também disse que o governo está preocupado sobre outro ponto da nova legislação: a regionalização. A lei 14.206 de julho de 2020, que fixa o novo marco regulatório do setor, estabelece critérios para a formação de blocos de municípios de maneira que estejam habilitados a conseguirem apoio técnico e financeiro da União.

Maranhão disse que irá fazer reuniões periódicas com a Abcon Sindcon e a Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe) para discutir a regionalização e a formação de blocos para evitar que, em alguns casos, possam ser criados conflitos que sejam direcionados para a Justiça. “Queremos evitar Frankensteins, para fugir da judicialização. Já chegou um caso em que haveria problemas, então queremos evitar isso.” 

Maranhão ressaltou que, para evitar a judicialização, o Governo Federal está tentando trabalhar com os estados oferecendo ajuda e abrindo caminho para que eles contratem consultorias sobre a regionalização. O trabalho tem urgência: os estados têm até 15 de julho para fazer a divisão dos blocos regionais que deverão ter operações de água e esgoto compartilhadas. Caso a data-limite não seja cumprida e não haja postergação do prazo, a União assume a tarefa da regionalização.  “Estamos buscando ajudar todos, não queremos assumir a tarefa, apenas colaborar”, afirmou o secretário.

Metodologia de capacidade econômica-financeira

Quais são os requisitos mínimos para comprovar a capacidade econômica e financeira para os operadores fazerem os investimentos? Ante a expectativa da publicação do decreto, no primeiro painel do debate, esta pergunta foi discutida por Daniel Keller, sócio-diretor da Una Partners; Regina Nunes, sócia da RNA Capital; Gustavo Kaercher Loureiro, sócio no Souto Correa Advogados; e Rogério Tavares, diretor vice-presidente de Relações Institucionais da Aegea Saneamento.

Regina Nunes apontou que é preciso verificar se há suficiência de recursos financeiros para cumprir as metas de investimento para atingir a universalização. Tem de ter uma triagem mais profunda sobre a qualidade de crédito dos licitantes de forma a atestar a sustentabilidade financeira de longo prazo. Além disso, deve haver detalhamento sobre o plano de investimentos necessário, aspectos de eficiência operacional, que são muito ligados à performance do gestor dos recursos. Devem ser analisados fundamentos de longo prazo do negócio, com vantagens competitivas da organização, a diversificação de seus ativos, exposição a riscos hidrológicos, políticos e regulatórios, níveis de eficiência operacional. Tudo o que impacta na visão do negócio e dos projetos da empresa. No lado financeiro, a análise de fluxo de caixa é a mais essencial, pois as necessidades de investimento no futuro serão imensas.  É preciso analisar a suficiência de geração de recursos para fazer frente à necessidade de caixa. A abordagem deve ser top-down, que inclui risco do país como um todo e risco do negócio e com a localização geográfica das operações, os riscos associados ao saneamento (hidrológico, político e regulatório), que apesar de serem riscos qualitativos, são mensuráveis. “A diversificação dos riscos é sempre importante a ser observado, liquidez, flexibilidade e financeira, estrutura de capital e rentabilidade, métricas financeiras ajustadas baseadas na geração de caixa e capacidade de pagamento, e governança e políticas financeiras têm de ser forte. Quem trabalha com esses negócios fazem essas avaliações todos os dias”, disse. “Precisamos encontrar um certificador que traga uma régua para isso. Existe vários tipos de certificadores, mas temos de criar algo eficiente, que traga certificadores com notório conhecimento na avaliação das empresas e projetos, em vez de trazer vários certificadores diferentes que farão metodologias diferentes”, afirmou. “O melhor caminho é a modelagem de fluxo de caixa de cada projeto, com identificação dos planos de captação dos recursos, disponibilidade de garantias para assumir financiamento e capacidade de execução dos operadores”, concluiu. Ter estatística histórica e projeção, incluindo análise de sensibilidade, é fundamental. 

Para Daniel Keller, os critérios serão muito importantes porque o desafio de investimento “é cavalar”. Será necessário investir muito mais no setor e a ideia de universalizar o acesso ao saneamento básico até 2033, apesar de desafiador, é “algo que agrada”. As empresas de saneamento terão de se alavancar muito mais para cumprir o plano e as metas até a data estipulada. Para ele, é fundamental que haja um retrato atual da condição das empresas, seja por meio de um indicador de alavancagem e/ou de eficiência operacional, mas também será essencial que esse monitoramento seja contínuo, pois o cumprimento dos investimentos dependerá da manutenção da capacidade de investimento dos operadores no longo prazo. “Existe a necessidade de avaliar a fotografia atual, e isso é relativamente simples para as companhias existentes. A validação tem de ser com base na melhor informação possível que são os demonstrativos financeiros auditados. Esse conjunto de informações é chave, olhando a partir de métricas pré-definidas. Ao longo dos anos seguintes, que essas análises sejam feitas. E que se projete o fluxo de caixa”, apontou Keller. O sócio-diretor da Uma Partners afirmou que haverá captação de recursos e aumento de endividamento, todos os investimentos terão de ser colocados no fluxo de caixa e essa projeção terá de ser factível. A análise de um certificador será essencial para dizer se a projeção será crível ou não. Para ele, é possível contar com indicadores de demonstrativos financeiros, e um indicador de alavancagem é crucial, como a dívida líquida em relação ao EBITDA. “A tendência é que este indicador cresça”, lembrou. É muito improvável, segundo Keller, que uma companhia estatal consiga fazer frente ao desafio dos investimentos sem aumentar a alavancagem. Por isso, será importante que esse indicador seja avaliado de tempos em tempos, repetiu. Em termos de alavancagem, explicou, um indicador muito utilizado, inclusive pelo BNDES, é o índice de cobertura do serviço da dívida. Keller ponderou, entretanto, que para empresas estaduais de saneamento, onde todos os negócios estão consolidados embaixo de um mesmo CNPJ, não existe, com raras exceções, formação de sociedades de propósito especifico, as SPEs. Para finalizar, ele ressaltou que outro indicador determinante será um que tenha capacidade de medir eficiência operacional, incluindo inadimplência, de forma objetiva. Dessa forma, ele considera uma referência a margem EBTIDA, a margem de lucro operacional. “Aumentar a eficiência operacional é um aspecto chave para conseguir atingir as metas de universalização prevista. No Brasil, as perdas são muito altas”, afirmou. “A avaliação é complexa em saneamento, já que em alguns casos envolver municípios exigirá algum corte da análise. As empresas estaduais são integradas e têm conjuntos de contratos diferentes entre si, o que cria o desafio de se pensar em um indicador”, disse.

O advogado Gustavo Kaercher Loureiro, sócio no Souto Correa Advogados, foi indagado sobre avaliação da capacidade econômica e financeira contrato a contrato ou global por operador de serviços. Ele afirmou que se o prestador não tiver capacidade de demonstrar por contrato que ele tem aptidão par alcançar as metas novas que foram introduzidas pelo Artigo 11-B, ele desconfia que o contrato passa a ser inválido. “Se não há contabilidade regulatória, se o contratante tem dificuldade em como mostrar no seu contrato qual é a situação da relação jurídica que ele tem com o município, que é o titular do serviço, eu desconfio que o contrato será invalidado”, disse. “Isso não é requisito do novo marco, desde sempre a relação deve ser concebida de forma contrato a contrato. Isso não significa que não possamos ter critérios de avaliação de capacidade que ultrapassem o contrato, que eu não possa ter critérios que se refiram a modalidades de prestação regionalizado. Mas, para começar a conversa, o contratante deve ser capaz de mostrar qual é o estado de seu contrato, contrato a contrato”, afirmou. Ele indicou que uma resposta mais longa exigiria contextualizar um pouco mais o problema para identificar qual é a unidade de aferição da capacidade econômica e financeira e que é possível fazer algumas leituras. Para ele, há três possibilidades. A primeira é entender que o decreto dispõe de forma abstrata de regras de comprovação de capacidade econômica e financeira para o setor de saneamento e que ele não faz distinção entre contratos em curso e futuros. “E eu não concordo com essa leitura, pois seria uma espécie de absolvição dos pecados cometidos no passado, bastaria demonstrar capacidade para estar absolvidos das invalidades de seu contrato e poder entrar no exame de capacidade, eu não gosto dessa leitura permissiva.” Outra leitura é a mais restritiva, que toma por base uma fotografia da situação do prestador atual, o contrato individual em curso, e apenas aqueles regulares, e a metodologia do decreto indicaria o que o contratante tem de comprovar contrato a contrato para mostrar que ele tem condições as metas incrementais do Art. 11-B. O decreto não se aplicaria a contratos futuros, somente aos contratos atuais, válidos e reguladores, e não atingiria contratos que já nasçam com as metas inseridas. A metodologia só deveria se preocupar com os contatos de maneira isolada. E tem a visão de que o contratado receba uma proposta do titular do serviço que diga como as metas devem ser incorporadas no contrato. 

Certificação da capacidade econômica-financeira

Quando forem definidos os critérios que nortearão o atestado de capacidade econômico-financeira das empresas, outro ponto importante serão a certificação do processo, seja com auditores que irão analisar os indicadores selecionados, seja com os acreditadores que poderão validar a capacidade técnica das empresas. Esse foi o tema do segundo painel do evento. “Essas questões são trazidas porque os contratos que serão objeto dessa análise não tinham foco em eficiência e aumento de investimentos”, afirmou Roberto Muniz, diretor de Relações Institucionais e Sustentabilidade da GS Inima Brasil.

Roberto Lambauer, advogado sênior do Pinheiro Neto Advogados, apontou que, no setor de saneamento, que tem múltiplos reguladores, não é possível ter um olhar só para a situação atual, mas também para o futuro. O trabalho do certificador terá presunção de validade e acabará desafogando o trabalho das agências e o fluxo de trabalho “A certificação trará mais confiabilidade, mas também mais agilidade ao processo”, disse. Há também a figura do acreditador. Ele lembrou que o PPI já tem uma norma que trata de acreditação de organismos certificadores de projetos de infraestrutura. E tem uma camada adicional de verificação que é a capacidade da empresa de atrair recursos externo, e a empresa terá de mostrar um planejamento de captação de recursos. “As empresas também terão de desenhar um plano de captação para os recursos nesses 12 anos que terão de alcançar a universalização. O decreto terá de capturar essas camadas e trazer mais segurança jurídica no processo, tanto do ponto de vista técnico quanto financeiro”, disse Lambauer.

Ricardo Ramos, sócio da BF Capital, disse que, diferentemente do passado, há hoje grandes empresas nacionais atuando no saneamento, o que ajudará da universalização. Além disso, o setor tem atraído o interesse de fundos estrangeiros e muitos players menores deverão começar a se juntar. Ele disse  não conhecer casos brasileiros onde seja necessário haver certificação, mas recordou de uma experiência quando a fabricante brasileira de jatos Embraer estava negociando a venda de aeronaves para uma companhia aérea norte-americana que ingressou em recuperação judicial. O BNDES foi chamado para trabalhar na certificação e apontar que o plano de negócios da empresa ainda era crível. Será necessário ter critérios para que empresas possam acreditar. Ao tratar sobre regionalização, as SPEs são válidas e interessantes, porém considera que dificilmente um banco vai considerar uma SPE segregada do acionista do ponto de vista do risco. No Brasil, não é comum a segregação do acionista da SOE como ocorre no passado. A SPE, por isso, no Brasil, será válida para fazer parcerias e delimitar os acordos. O risco estará sempre associado aos acionistas e aos investidores da empresa.

O advogado Bruno Aurélio, sócio no Demarest Advogados, sobre certificação, ele considera que há preocupações. “Há figuras que são dadas como solução, para que a lei seja eficaz e seja atendida, mas podem causar problemas ao final do dia. Não há prática de certificação econômico-financeira no setor de infraestrutura no Brasil”, disse. Ele explicou que, a partir do momento em que se estabelece a alguém determinada competência e essa pessoa, como certificadora, que é diferente do auditor, terá responsabilização sobre aquilo que ela certifica, se aquilo é ou não é apto a determinada coisa, é criado um compromisso de responsabilidade do que foi auditado. Segundo ele, isso pressupõe uma  figura independente e apta a falar sobre algo, que se responsabiliza sobre aquele resultado que traz. “É necessário pensar qual é a lógica disso”, disse, pois o ambiente de negócios no Brasil é cercado de desconfiança. Ao exemplificar, ele ponderou que, quando o setor privado faz uma avaliação técnica para fazer uma proposta, e aquele resultado é maior ou menor do que se esperava, o próprio mercado privado desconfia do resultado. Em outro lado, o regulador não parte de uma premissa que há uma relação de seriedade na prestação de sérviços, mas parte de uma visão que que a empresa quer tirar o máximo de proveito. O setor privado parte do pressuposto de que o regulador está sempre atrás de um problema. E tem o controlar do regulador e do privado, que acha que todo mundo foi capturado. “Infelizmente, trabalhamos em ambiente de desconfiança”, resumiu. Outro ponto de preocupação pode ser visto em rodovias. As concessionárias devem fazer uma autoavaliação de desempenho e encaminhar para o Tribunal de Contas da União, que por sua vez não pode confiar no processo porque a avaliação estaria comprometida por quem presta serviços que ele mesmo aufere. “Haverá um órgão independente que irá avaliar a certificação? Como o TCU e o Ministério Público irão avaliar esse processo de certificação? Eles vão acreditar? Se a certificação tiver responsabilidade sobre o que se certificou, isso terá um custo elevado, não?”

 

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