Por Michel Temer

Sanear é tornar são, habitável, respirável. Saneamento tem, lexicamente, essa significação. Ganhou significado político-administrativo na medida em que ficou vinculado à ideia de gestos governativos que objetivem proporcionar condições dignas de vida aos cidadãos, para que não fiquem sujeitos às doenças derivadas da não entrega de água pura e da não coleta e tratamento de esgotos.

De logo se verifica que vários dispositivos constitucionais são aplicáveis. Primeiro, a dignidade da pessoa humana (Constituição Federal, artigo 1º, III). A Constituição determina tratamento digno às pessoas. Será digna a medida governamental que submete seus nacionais à inexistência de saneamento? Não. A falta de saneamento é tratamento indigno dado aos indivíduos.

Segundo, são preceitos da Constituição “erradicar a pobreza”, “reduzir as desigualdades sociais” e “promover o bem-estar de todos” como está escrito em seu artigo 3º, III e IV. Falta de saneamento cumpre esses preceitos? Absolutamente não! Saneamento é direito de todos e dever do Estado, além de ser um dos pressupostos para a boa saúde. A ausência de saneamento é prejudicial à saúde e, portanto, contraria a Constituição. Políticas governamentais que não prestigiem o saneamento básico ou imponham medidas que o onerem são impróprias.

A esta altura. o leitor estará perguntando: por que essa digressão sobre os princípios constitucionais se o tema diz respeito à reforma tributária? E aqui devo declarar que a reforma aumentará a carga fiscal do saneamento básico para aproximadamente 26,5%, em contraste com os atuais 9,74%. A diferença gerará incremento de 18% nas tarifas.

Sabidamente, esse percentual acrescido será pago pelo consumidor. O que poderá acontecer? Aumentará a busca por soluções ambientalmente inadequadas de abastecimento de água e esgotamento sanitário, como fossas, despejos em rios e valas. Ou seja: meio ambiente desequilibrado e vida indigna para os indivíduos.

Impressiona-me dado que obtive: 330 mil internações anuais por doenças relacionadas à falta de saneamento; R$ 740 milhões com as internações. A universalização do saneamento proporcionaria, até 2040, economia de R$ 25 bilhões, além da melhoria das condições de vida da população. No contexto em que 15 % dos brasileiros não têm acesso a abastecimento de água, 44% não têm coleta de esgoto e, daquele esgoto coletado, 48% não é tratado, o saneamento deve ser incentivado, e não desestimulado.

Já é possível perceber do que se está a tratar: é sugerir o não aumento da carga tributária do saneamento básico e mantê-la no percentual atual: 9,74%. É possível fazê-lo? Sim. Para tanto, é preciso tratar, na reforma tributária, saneamento básico como aquilo que realmente é: um serviço e uma política de saúde pública. É constitucional fazê-lo por meio de Lei Complementar? Por tudo o que está escrito neste artigo, sim.

O detalhamento em lei daquilo a que a Constituição apenas faz referência, “serviços de saúde”, é parte do caráter regulamentador da legislação infraconstitucional. Convém realizá-lo? A resposta é também afirmativa. Isso, na verdade, para dar cumprimento aos preceitos constitucionais, direta ou indiretamente.

Há argumentos suficientes, de ordem constitucional, ética e moral, para até zerar a carga tributária hoje incidente sobre os serviços de saneamento básico, tamanha sua importância e essencialidade. Estar-se-ia a seguir o bom exemplo de países mais desenvolvidos, onde a alíquota zero para o saneamento, mesmo já alcançada a universalização dos serviços, é realidade.

Daí por que é fundamental reconhecer, na regulamentação da reforma tributária, que saneamento é saúde e não elevar a carga fiscal do setor. Cumprir-se-ão, com isso, os objetivos constitucionais imperativos aqui antes relatados.

 

*Michel Temer é ex-presidente da República