A realidade do saneamento em todo o mundo preocupa organizações voltadas para o desenvolvimento global. É o caso da Fundação Bill e Melinda Gates, uma instituição filantrópica que o ex-presidente da Microsoft fundou em 2000 com a esposa para incentivar projetos inovadores e iniciativas voltadas para a saúde e a sustentabilidade. É considerada a maior fundação privada do mundo.
Desde 2005, o programa de água, saneamento e higiene da instituição quer criar novas tecnologias para atender uma quantidade de 4,5 bilhões de pessoas que ainda não possuem serviços seguros de saneamento, principalmente na China, Sul da Ásia e África Subsariana.
Doutor em engenharia sanitária e ambiental, Doulaye Kone ocupa atualmente o cargo de vice-diretor dos programas de água, saneamento e higiene, crescimento e oportunidade global na Fundação. Ele veio ao Brasil para participar do World Toillet Summit, em novembro, e falou sobre a necessidade de se reinventar os banheiros e criar uma nova indústria de saneamento para as pessoas que não tem acesso aos serviços sanitários.
Na fundação, Kone tem acelerado o desenvolvimento de banheiros que não necessitam ser conectados diretamente com a rede de esgoto. Na sua opinião, os sistemas tradicionais de atendimento devem conviver com soluções alternativas em determinadas comunidades, para que todos tenham acesso ao saneamento.
Nascido na Costa do Marfim, Kone trabalhou em iniciativas da ONU para levar água e saneamento básico para regiões da África, antes de entrar na Fundação Bill e Melinda Gates.
Como a Fundação Bill e Melinda Gates aborda a questão do acesso ao saneamento básico?
Olhamos para o saneamento segundo um princípio que seguimos em todos os programas da Fundação Bill e Melinda Gates. Nós vemos o saneamento básico como uma questão macroscópica, cuja solução pode contribuir também para a economia global. Veja, por exemplo, as estatísticas do Brasil: é muito grande a quantidade de pessoas sem acesso ao sistema sanitário. Agora, você pode ver isto como um desafio ou como uma oportunidade. Certamente, aqui, o impacto de melhorias no saneamento contribui tanto para a saúde quanto para a economia.
Quando falamos sobre saneamento, a maioria das pessoas pensa que o melhor sistema inventado é o do banheiro com descarga de água. Para isto você precisa de uma rede de água e esgoto. Acontece que nem toda comunidade, e nem todo país, possui essa rede. Se você olha para o mapa do planeta, a maior parte das pessoas não vive em locais com sistemas sanitários. É uma indústria desigual. É chocante ver a diferença entre o mundo rico e o mundo pobre.
Mesmo aqui, em algumas regiões do Brasil, há lugares sem acesso regular à água. Não podemos pensar em sistemas de saneamento completamente dependentes apenas desse recurso. A maior parte dos banheiros atualmente consome mais água potável do que seu próprio usuário. Isso é loucura. A questão é: como podemos transformar isto em uma oportunidade?
Quando entrei na Fundação, nós dissemos: vamos reinventar o banheiro. As pessoas nos olharam como se estivéssemos loucos, afinal, o banheiro já foi inventado, o que há a se fazer? Nós pensamos em processos seguros para eliminar agentes patogênicos do ambiente, principalmente em áreas que a ciência e a engenharia ainda não se esforçaram o suficiente. Aliamos a engenharia química e mecânica à biologia, para dar segurança aos usuários e ao meio ambiente.
O mercado para a criação de sistemas sanitários descentralizados, sem ligação com o sistema de esgoto, é gigantesco. Seis entre dez pessoas do planeta não possuem serviços sanitários seguros. Basicamente, as economias que crescem mais rapidamente não possuem sistemas de esgoto. Elas precisam de soluções “off-grid” e possuem os meios para pagar por isso.
Este sistema descentralizado planeja substituir o sistema de esgoto tradicional?
Não. O sistema descentralizado não está em competição com o sistema tradicional. A união de ambos os sistemas pode ser bem utilizada.
Como você vê a aplicação destas soluções no Brasil?
Quando escutei as conversas sobre o saneamento no Brasil, lembrei da África do Sul. A África do Sul percebeu, em 2015, que o sistema descentralizado era uma oportunidade de mercado e criou programas para implementá-lo. A maior parte de sua população morava longe da rede de esgoto. Além disso, percebeu-se que era uma chance de se reduzir o consumo de água. Hoje temos a tecnologia para que o vaso sanitário produza sua própria água para descarga. O governo da África do Sul percebeu isso e suas ações não partiram do Ministério de Saneamento Básico. Vieram do Ministério da Indústria. O país virou rapidamente líder dessa nova indústria, fabricando vasos sanitários com essa tecnologia no próprio país.
Quais outras ações foram executadas pela Fundação na área do saneamento?
Um de nossos trabalhos na fundação foi reunir 47 países para discutir padrões regulatórios. Foi um desafio interessante: trabalhamos com membros da indústria, órgãos de governos, municípios e membros da academia para discutir o que não tínhamos feito antes: qual deve ser a performance de um vaso sanitário? E como deve ser sua performance em um sistema sanitário descentralizado?
Nós concordamos que o objetivo principal do vaso sanitário é eliminar bactérias de uma maneira segura, e construímos o padrão regulatório ao redor disto. Desde 2018, alguns países já adotaram o padrão criado. O Brasil, entretanto, ainda não o adotou.
Não é uma solução do problema, mas é uma oportunidade para se pensar em padrões que criem segurança para investidores e para o público em geral.