Por Cláudio Frischtak*
Nosso país vive um momento de estupefação, com a guerra ideológica sem fim, ânimos acirrados, mal-estar com o presente e um ceticismo que se enraíza perigosamente. Há, contudo, boas notícias. A Medida Provisória (MP) 868, que promete transformar o saneamento básico no país, foi aprovada na Comissão Mista do Congresso e está para ser votada. Se há uma legislação no Congresso que tem o poder de melhorar a saúde e o bem-estar de dezenas de milhões de pessoas, é esta MP.
Vale recordar que os problemas associados à fragilidade no saneamento básico vão além das parasitoses e verminoses, e incluem leptospirose, dengue, cólera e doenças entéricas, dentre outras. Mas não só: a falta de saneamento básico afeta o desenvolvimento cognitivo das crianças mais pobres e mais expostas, e logo sua capacidade de aprendizado; eleva o absenteísmo e reduz produtividade dos trabalhadores; e pressiona os gastos do SUS e do INSS.
Mas, afinal, o que a MP propõe? Primeiro, introduz competição num setor dominado por empresas estaduais monopolistas e que, na prática, não estão sujeitas às mesmas regras e contratos a que estão os operadores privados. Os municípios poderão continuar a prestar os serviços diretamente, mas, se forem delegar a terceiros, deverão chamar a concorrência —o que hoje não ocorre, pois têm a opção de assinar os “contratos de programa” com as empresas estaduais.
Ao mesmo tempo, a MP estimula os ganhos de escala por meio da regionalização dos serviços, seja no âmbito de uma região metropolitana, bacia hidrográfica ou outro critério técnico e econômico. Municípios serão incentivados a se consorciar, e microrregiões de saneamento serão formadas, atraindo o investimento privado para servir todos os municípios no âmbito de uma região, garantindo, assim, o atendimento aos mais pobres — hoje abandonados pelas empresas estatais que, no seu conjunto, dão prioridade às áreas urbanas mais ricas.
Segundo , a MP propõe uma mudança fundamental no ambiente regulatório, hoje fragmentado, sem normas universais, e gerando ineficiência e insegurança jurídica. A Agência Nacional de Águas será a referência nacional, uma demanda já de muitos anos de investidores que se afastam do setor pelo risco regulatório. Muitas das empresas estaduais não apenas se acomodaram a contratos pouco exigentes com os municípios, mas a uma regulação frágil, com um regulador sujeito à interferência do governo regulando uma empresa do próprio governo.
Terceiro, a MP reformula o Sistema Nacional de Informação em Saneamento (SNIS), cujos dados são atualmente menos que confiáveis, pois são fornecidos pelas empresas, e sem auditoria independente. Há um incentivo perverso para reportar cobertura de serviços em bases fictícias, e esconder sua má qualidade, seja o líquido que sai intermitentemente da torneira, o esgoto que vai para os córregos ou o enorme desperdício de água que ocorre no país.
Universalizar a cobertura e melhorar a qualidade dos serviços vão demandar uma transformação radical do setor, atualmente em 94% nas mãos do setor público. Irá requerer investir mais e melhor. Os investimentos em termos reais (corrigidos pelo IPCA) estão estagnados há uma década: em 2008-09, a média dos investimentos foi de R$ 12,99 bilhões; em 2017-18, R$ 12,87 bilhões. Este nível de investimentos — 0,20% do PIB — contrasta com o necessário para se universalizar os serviços: 0,44% do PIB ou aproximadamente R$ 30 bilhões por 20 anos.
A MP necessita ser votada na Câmara e no Senado neste mês de maio, antes de ir para sanção presidencial. Mas há uma oposição ferrenha: sindicalistas e funcionários das empresas estaduais, os políticos dos quais se alimentam, outros interessados menos republicanos, formaram uma aliança para deixar ficar tudo como está. E o interesse público, difuso, quem irá defender? A nova legislação é um ponto de partida.
Cláudio Frischtak é economista
Fonte: O Globo