Ao longo desta década, o setor de saneamento tem passado por grandes transformações. Não apenas o volume de obras tem aumentado de forma significativa, como também o ecossistema de empresas, estatais e privadas, tem se tornado mais ativo e dinâmico.
Novos formatos de parcerias vão surgindo e, em resultado da aliança entre capital privado e setor público, mais pessoas passam a ter acesso ao serviço. O setor atua disposto a cumprir uma meta rigorosa, estabelecida pelo Novo Marco Legal do Saneamento Básico, que passou a vigorar há quatro anos: atendimento de 99% da população com água potável e 90% com coleta e tratamento de esgotos até 2033 – ou seja, daqui a apenas nove anos. A possível privatização da Sabesp, em São Paulo, ainda caminha para um prazo ainda menor para a universalização, 2029.
“O marco legal foi amplamente discutido com a sociedade e agregou uma série de benefícios para o setor. Aumentou a competição, o que tende a valorizar a eficiência, e melhorou a capacidade de o setor privado atrair capital”, aponta Christianne Dias Pereira, presidente da Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon).
A legislação é suficiente para apoiar a continuidade dos avanços, avalia ela. “Existe no setor uma posição pacífica de que o caminho está colocado, tanto para o setor público quanto para o privado. Agora é botar a mão na massa, avançar nessa jornada. Não podemos perder a janela de oportunidade que foi a edição do marco e o início desse ciclo de implementação”, explica.
Acesso a investidores
Até a aprovação do marco, o saneamento era um setor prioritariamente estatal, afirma Fábio Abrahão, ex-diretor do BNDES, responsável pelas modelagens de concessão de saneamento e atual diretor de investimento da YvY Capital.
“À iniciativa privada cabia uma participação muito pequena. O setor foi recriado a partir do Marco Legal e, mais do que isso, começou a se movimentar na direção do cumprimento das metas de universalização. Mais investidores, nacionais e internacionais, têm participado junto aos operadores. O mercado de capitais, especialmente o que atua com títulos de dívida, vem apoiando ótimas oportunidades de investimentos que beneficiam o consumidor final, fazem sentido para o setor público e são vantajosas para o setor privado”, afirma o diretor de investimento.
Abrahão e Pereira identificam casos de sucesso importantes registrados nos últimos anos. Para ele, o bom momento do setor de saneamento no Rio de Janeiro é emblemático. “Quando a formatação é bem feita, o dinheiro vem. O leilão no estado foi um marco em atração de investimentos e já apresenta resultados. Temos a ampliação do acesso da população à água tratada. No aspecto ambiental, praias tradicionalmente poluídas, como a do Flamengo, estão frequentemente aptas para banho. Era algo raríssimo de acontecer e tende a se acelerar com a continuidade do trabalho da concessionária Águas do Rio. É um movimento com potencial de ganhar escala, seja por efeito de demonstração dos cases de sucesso, seja pela pressão da sociedade civil, ou pela consolidação do mercado”.
Por sua vez, a presidente da Abcon cita uma concessão anterior ao marco, que exemplifica a força da parceria entre poder público e iniciativa privada: “Em Manaus, a Aegea conseguiu solucionar um desafio: instalar canos elevados para atender aos moradores de palafitas. Há outros casos de ações que trazem novos caminhos para o setor, incluindo a aposta em economia circular e iniciativas voluntárias de preservação do meio ambiente. O setor está comprometido com a missão de transformar vidas”.
Gargalos estruturais
Em 2022, os investimentos em água e esgotamento sanitário alcançaram R$ 22,5 bilhões, um montante 30% maior do que os R$ 17,3 bilhões investidos no ano de 2021. De acordo com um levantamento publicado pelo Instituto Trata Brasil em 2023, com base em dados de dois anos antes, ainda restavam R$ 538 bilhões a serem investidos para a universalização, o que gera uma demanda anual de mais de R$ 40 bilhões, que já não foi cumprida em 2022.
O estudo da organização aponta que uma das características mais importantes do novo marco é avaliar a capacidade econômico-financeira das concessões de saneamento frente às obrigações e metas impostas. No entanto, entre os 3,9 mil municípios cujas documentações de capacidade econômico-financeira deveriam ser apresentadas pelos respectivos prestadores até o final daquele ano, segundo o decreto 10.710/2021, 1,1 mil municípios, quase um terço desse grupo, sequer teve a documentação apresentada ou foi considerada pendente pelas respectivas agências reguladoras subnacionais.
Os municípios com documentação pendente, onde moram quase 30 milhões de brasileiros, acabaram por apresentar indicadores piores do que a média nacional, e também na comparação com os considerados regulares – que investem, na média R$ 113,03 por habitante em saneamento básico, duas vezes mais do que os R$ 55,22 dos que têm situação pendente.
As dificuldades encontradas por muitos estados, e descrita no levantamento do Instituto Trata Brasil, são resultado de uma combinação de fatores que o setor ainda precisa superar. “Precisamos melhorar em políticas públicas, regras regulatórias e pacto social”, aponta Neuri Freitas, presidente da Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (AESBE).
O marco contribuiu para criar uma mobilização inédita a respeito das questões estruturais que atingem o saneamento, diz ele. “A legislação mexeu com o país e mobilizou as operadoras, o que foi muito positivo. A pauta ganhou protagonismo. Mas o prazo de 2033 para a universalização dos serviços é difícil de cumprir em algumas localidades, dadas as condições para operar”, alerta Freitas.
O financiamento via fontes tradicionais, em especial os grandes bancos públicos, ainda é demorado, indica ele. “Há também uma questão cultural: muitas pessoas resistem a se ligar à rede. Fortaleza (CE), por exemplo, tem 99,4% de cobertura de água, mas ela só chega a 77% da população, porque uma parte expressiva dos imóveis não se interliga à rede”, afirma.
Quanto menos pessoas participam, segundo o presidente da AESBE, mais alta tende a ficar a tarifa média. “Sem um esforço da União, dos estados e dos municípios, muitas vezes encontramos dificuldades para fazer nosso trabalho. Precisamos de suporte legal, regulatório e até mesmo tributário, para garantir modelagens que permitam entregar os serviços de forma o mais acessível possível”.
Operador de qualidade
O ex-diretor do BNDES Fábio Abrahão lembra que, nas regiões onde o saneamento ainda não avançou, principalmente, é crucial que os projetos tenham qualidade. “Para se investir em um projeto de infraestrutura no Brasil é preciso ter um operador de qualidade em parceria. Para isso, é essencial conciliar três fatores: histórico de qualidade para o perfil de operação, de acordo com o tamanho; especialidade setorial e capacidade de mobilização junto às comunidades e aos órgãos públicos locais”, diz ele, que acrescenta:
“O saneamento é o menos maduro dos setores de infraestrutura do Brasil. E os ativos estão enterrados, muitas vezes não se sabe com precisão as condições, o acesso a informações é difícil. Uma empresa que entende das especificidades do setor vai fazer toda a diferença”.
FONTE: Publieditorial Valor