O setor de serviços de água do Brasil ainda está nos estágios iniciais de um ciclo de investimento que pode atingir cerca de R$ 900 bilhões (US$ 152 bi) até 2033.
Desde meados de 2020, quando o Marco Legal do Saneamento começou a remodelar o setor, os governos locais foram obrigados a garantir cobertura total de serviços de água e esgoto para toda a população, sob risco de perder o acesso a financiamento federal. Essa mudança abriu caminho para a participação da iniciativa privada em um setor anteriormente dominado por estatais.
Christianne Dias Ferreira, presidente da Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água (Abcon), afirma que a maior parte dos R$ 900 bilhões necessários para atingir as metas de cobertura total até 2033 será investida nos próximos anos.
Ela também prevê que, até 2026, as operadoras do setor privado terão fatia de mercado semelhante às estatais no setor. A executiva, que também é ex-diretora da Agência Nacional de Águas (ANA), conversou com a BNamericas sobre essas tendências e o cenário na indústria.
BNamericas: Qual a expectativa com relação aos leilões na área de saneamento para esse ano? Você vê essa agenda avançando ou há riscos à frente da não materialização desses leilões?
Ferreira: Eu vejo sim essa agenda avançando, até pelo que sentimos do clima positivo do ano passado, em leilões anteriores, apesar de haver alguns elementos que causam uma certa insegurança jurídica, como os efeitos da reforma tributária no segmento.
Os leilões do ano passado aconteceram e teve muita concorrência. No leilão de Sergipe, teve a Sanepar oferecendo contratos de PPPs, a privatização da Sabesp… muitas operações importantes.
Tem uma carteira de contratos que o BNDES vem modelando há bastante tempo e que deve sair ao longo desse ano, por exemplo, os contratos dos estados do Pará, de Pernambuco e Rondônia.
BNamericas: Qual é o nível de participação do setor privado no setor de saneamento hoje e qual o potencial de expansão?
Ferreira: Temos hoje cerca de 30% de participação do setor privado. Saímos nos últimos anos de um patamar de 5% para os atuais 30%.
A nossa expectativa é estar com uma participação de 50% no final de 2026. Eu diria que nós já superamos hoje nossa estimativa que tínhamos em termos de atuação do setor privado.
Vale dizer que essa participação privada conta já com a presença da Sabesp, que foi privatizada e agora é considerada um participante do setor privado.
BNamericas: Olhando a agenda de leilões e também considerando a participação crescente do setor privado, você espera novos participantes nos leilões ou uma concorrência entre atuais empresas?
Ferreira: Eu vejo a entrada de novos players. Há alguns players do setor elétrico que estão olhando para o saneamento e participando.
Além disso, temos empresas como o Pátria e a Acciona, que acabaram ganhando também um dos contratos de PPP da Sanepar, que querem expandir sua atuação no setor.
Também vale dizer que, depois da aprovação do marco regulatório, houve realmente o crescimento de algumas empresas, de alguns operadores que já existiam, e que realmente tomaram outra envergadura.
BNamericas: Por que empresas do setor elétrico se interessam pelo saneamento, apesar de serem setores com muitas diferenças?
Ferreira: Tem muitas diferenças, sim. Alguns analistas gostam muito de comparar saneamento com o setor elétrico, mas realmente é muito diferente a lógica.
O que eu acho que tem atraído o setor elétrico é que essas empresas estão descobrindo que saneamento é um setor interessante para se investir. O risco de demanda não existe, diferentemente do que existe em outros setores, como no de transportes.
Este elemento é importante porque não podemos esquecer o que aconteceu na época da pandemia, que abalou todas as estruturas, motivou uma série de processos de reequilíbrios de contratos, porque as pessoas pararam de viajar de avião, de viajar de ônibus, mudou formas de consumo e de vida e afetou vários segmentos.
No saneamento, não. A demanda é crescente, porque a gente tem uma perspectiva ainda de aumento populacional e uma demanda cada vez maior por água e esgotamento sanitário. Então, é um setor interessante de se fazer um investimento de muito longo prazo.
BNamericas: Temos visto um predomínio quase que completo de emissões de debêntures como mecanismo de financiamento. Isto continua ou você vê outros instrumentos de financiamento ganhando escala?
Ferreira: Hoje, basicamente, grande parte dos nossos operadores contam com fundos de investimento internacionais e também emissão de debêntures.
Há uma expectativa de que emissão de debêntures continuará sendo usada ainda por muito tempo para financiar as outorgas, diante de tanta concorrência nos leilões e também os próprios investimentos rumo à universalização.
BNamericas: Várias empresas do setor já manifestaram o desejo de fazer IPOs, porém o mercado de capitais brasileiro parece nesse momento bastante fechado. Persistindo um mercado de capitais mais desafiador para operações de equities, você vê algumas empresas tendo uma maior limitação para participar de novos projetos, assumir novos contratos?
Ferreira: Não temos visto essa sinalização ainda. É claro que, em tese, isto que você diz está correto, esta limitação pode ser prejudicial em algum momento, mas eu não vejo ainda isso se configurando numa limitação para o setor.
BNamericas: Temos visto no Rio de Janeiro contestações associadas ao contrato vigente de concessão por parte das empresas, que veem necessidade de reequilíbrios por conta de alegados erros de projeções nos editais dos contratos. Você identifica isso acontecendo em outros estados?
Ferreira: Nós da Abcon temos um papel muito importante a exercer, que é o de nos aproximar cada vez mais do BNDES, que hoje é considerado o grande elaborador dos projetos, para que essas questões possam ser corrigidas nos próximos editais, sem penalizar demais as empresas.
Então, nossa preocupação hoje como associação é que problemas não sejam replicados nos próximos contratos, colocando todo o risco para as empresas.
Pode existir um ou outro contrato em outras localidades com algum tipo de problema, por uma falha pontual nas estimativas feitas no edital – como, por exemplo, nível de perdas de água calculados num nível menor do que realmente eram, em uma determinada localidade –, mas tais problemas são pontuais.
BNamericas: A questão de reequilíbrio é um tema sensível em toda a área de infraestrutura, porque demora muito no Brasil a fase de discussão sobre os processos de reequilíbrio – uma definição às vezes leva anos. Este problema existe também no caso do saneamento, até pelo fato de, além de haver um regulador nacional, a ANA, há também reguladores estaduais?
Ferreira: Eu entendo que este é um gargalo. A demora numa decisão nos processos de reequilíbrios atinge todo o setor da infraestrutura e não é diferente com o setor de saneamento.
Os processos de reequilíbrio são extremamente complexos. Então, em especial no setor de saneamento, a gente tem um agravante, que nós lidamos com essa pluralização de agências reguladoras, que têm governanças, autonomia e capacidades de avaliações diferenciadas, umas melhores, outras nem tanto. Mas isso tudo está se tentando corrigir com o alcance de uma maior segurança jurídica, inclusive com a entrada de um papel maior da ANA.
BNamericas: A Abcon tem alertado para os efeitos negativos da reforma tributáriano setor de saneamento. É possível reverter esses riscos com mudanças em alguns pontos do novo modelo tributário?
Ferreira: O impacto da reforma tributária é grande, sobretudo do ponto de vista conceitual, porque é uma mudança de regra. Então, mexe, no geral, com o plano de fundo de segurança jurídica. Também tem um impacto prático real muito grande, porque tem uma previsão de aumento da conta de água muito significativa. Isto mexe diretamente nos contratos.
Mas, como a reforma tributária também é gradativa, a gente não vai sentir o efeito este ano. Vamos senti-lo quando realmente começarem a cobrar o IBS, que representa os impostos que a gente não pagava: ICMS e ISS. Então, o efeito vai ser sentido mais de perto daqui a um tempo.
Quero dizer com isso que o impacto é grande, mas vejo espaço para uma reflexão e para uma alteração, digamos, uma correção desse equívoco que eu acho que foi não contemplar o setor de saneamento com a neutralidade tributária.
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