Os investimentos em saneamento básico no Brasil passam por um momento de amadurecimento e consolidação, cinco anos após a entrada em vigor do novo marco legal do setor, que permitiu o avanço da participção do capital privado nos serviços de água e esgoto .neste ano, 16 projetos de concessões modelados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) resultarão em R$ 26,7 bilhões para um setor que sofre com uma defasagem histórica de recursos. Para 2026, a expectativa é que R$ 39,2 bilhões sejam movimentados em outros dez leilões. São valores maiores do que os registrados no início desta década, já sob influência da abertura do mercado, mas ainda abaixo do necessário para chegar à meta de universalizar os serviços até 2033.

A universalização consiste no atendimento de 99% da população com água potável e de 90% com coleta de esgoto, metas estipuladas pela Lei nº 14.026/2020, que estabeleceu o marco legal. Coordenado pelo Ministério das Cidades, o Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab) calculou que seriam necessários R$ 516,4 bilhões em investimentos para atingir esses níveis de cobertura. Descontado o caminho que já foi percorrido, o valor cai para R$ 45,1 bilhões por ano em novos aportes até 2033, de acordo com o Instituto Trata Brasil.

O ano começou com a expectativa de que 26 leilões fossem realizados. Ainda assim, os resultados mostram um avanço, diz a diretora-executiva da Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon-Sindcon), Christianne Dias. “Eram 26 projetos sendo modelados pelo BNDES, com periodicidades diferentes. Esses processos são complexos e dependem de uma conjuntura política. À medida que ficam prontos, vão saindo, mas há fatores que atrasam ou adiantam os cronogramas”, afirma. “Esse é o setor da vez. Não tem como paralisar esse processo agora.”

Entre os grandes projetos esperados para este ano pelo mercado está o leilão de Pernambuco, considerado um dos maiores, com edital publicado no início de setembro. Os investimentos devem chegar a mais de R$ 19 bilhões, alcançando 9,5 milhões de habitantes em 185 municípios do Estado. O consórcio vencedor será conhecido em meados de dezembro. Entre os certames de 2026, o do Maranhão desponta como o maior, com previsão de investimentos de R$ 18,7 bilhões e abrangência em 214 cidades. Em Goiás, o investimento estimado é de R$ 5,86 bilhões, com foco em esgotamento sanitário. Outros projetos importantes aparecem em Alagoas (R$ 1,7 bilhão), Paraíba (R$ 3,45 bilhões) e Rio Grande do Norte (R$ 4 bilhões).

 — Foto: Arte/Valor

Para a presidente do Instituto Trata Brasil, Luana Pretto, os resultados já são expressivos. Ela cita o caso recente do Espírito Santo, onde empresas como a Axion ampliaram sua atuação em projetos de esgotamento e reúso. “Desde a aprovação do Marco Legal do Saneamento, os Estados entenderam que, para alavancar o volume de investimentos, seria necessário buscar parcerias, seja por meio de privatizações, concessões parciais ou PPPs. Já tivemos a captação de mais de R$ 370 bilhões em contratos firmados, garantindo investimentos vultosos para os próximos anos”, afirma. “Há, sim, apetite do setor privado. As concessões continuam atraentes, e é possível que novos players, inclusive de outros setores, passem a disputar os ativos. Quando falamos em PPPs, o apetite é um pouco menor, porque envolvem mais risco, já que a relação é com o poder público, e não com o cliente final, mas o interesse segue firme.”

O pesquisador Luiz Firmino, do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da FGV (FGV Ceri), concorda que o ritmo das concessões é positivo e que há disposição das empresas em continuar investindo. Segundo ele, o Marco Legal do Saneamento foi essencial para dar segurança jurídica e previsibilidade aos investidores do setor ao tornar a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) responsável por editar as normas de referência para a regulação do setor. “Isso é importante, porque boa parte da segurança jurídica depende de uma regulação funcional e com regras claras”, afirma. “O ritmo segue muito bom, considerando que já se passaram quatro anos desde os primeiros leilões em 2021. O tempo de preparação de uma modelagem varia muito, pois, além dos estudos, há que se estruturar as regionalizações, para dar escala e atratividade com a inclusão de municípios menores.”

A consolidação do ambiente regulatório é fundamental, mas não elimina as dificuldades do setor que vive um atraso histórico evidente, com desigualdades marcantes entre as regiões do país. Nos Estados das regiões Sul e Sudeste, mais de 90% da população tem acesso à água tratada, enquanto no Norte os índices permanecem abaixo de 70%. A diferença é grande, mas no tratamento de esgoto é ainda maior: cerca de 80% dos moradores do Sudeste contam com coleta, mas no Norte o serviço ainda não alcança 20% da população.

E esse é um problema que passa longe de ser apenas das cidades menores do país. Entre as 27 capitais brasileiras, apenas nove têm cobertura de água tratada igual ou superior a 99%. A média nacional é de 95,68%, mas a desigualdade é grande. Na região Norte, por exemplo, há capitais com níveis de atendimento próximos ou abaixo de 50%, como Macapá (AP), com 54,38%, Rio Branco (AC), com 53,50%, e Porto Velho (RO), com apenas 41,79%. A coleta de esgoto é também mais desigual. Apenas oito capitais superam os 90% de cobertura. Mais uma vez, a região Norte tem os piores índices, inferiores a 10%, como Porto Velho (9,89%) e Macapá (8,05%).

Mais uma vez, o tratamento do esgoto coletado é o ponto mais baixo entre as capitais. Apenas cinco tratam pelo menos 80% dos efluentes: Curitiba, Brasília, Boa Vista, Rio de Janeiro e Salvador. Na outra ponta, segundo o Trata Brasil, quatro capitais tratam menos de 20% do esgoto coletado: Porto Velho, com 12,18%, Macapá, com 14,42%, São Luís, com 15,89%, e Teresina, com 19,19%.

O atraso também se mede em investimentos no setor. “Enquanto o Sudeste investe, em média, R$ 171 por habitante ao ano em saneamento, o Norte investe apenas R$ 66 e o Nordeste, R$ 87. Isso explica por que apenas 60% da população do Norte tem acesso à água tratada e 22% à coleta e tratamento de esgoto”, diz Pretto.

Para ela, a correção desse desequilíbrio exige uma política pública voltada à regionalização e soluções adaptadas à realidade local. “Em muitos locais da Amazônia, será necessário adotar soluções individuais ou baseadas na natureza. Já em cidades adensadas como Manaus e Belém, os sistemas coletivos são inevitáveis. O mesmo vale para o Nordeste, que enfrenta secas extremas e escassez hídrica. É preciso garantir sustentabilidade econômico-financeira para atrair investimentos e não deixar ninguém de fora da universalização”, afirma.

Firmino concorda que a modelagem é o ponto-chave para garantir os investimentos necessários e tarifas que se enquadrem na capacidade de pagamento dos usuários. “Quando isso não é possível, a PPP [Parceria Público-Privada] é uma boa saída, pois pode contar com aportes públicos para manter a modicidade tarifária.” Segundo ele, é fundamental também fortalecer as agências reguladoras. “Precisamos de investimento constante nelas, pois as obras de saneamento têm um nível de imprevisibilidade que demanda agilidade do regulador, sob pena de atrasos.”

Um dos pilares do novo Marco Legal do Saneamento é a regionalização. O objetivo é garantir escala, eficiência e viabilidade econômica para os serviços de água e esgoto. A lógica é agrupar municípios, especialmente os pequenos ou com baixa capacidade financeira, em blocos regionais para que possam compartilhar investimentos, custos operacionais e infraestrutura. Esse modelo é usado para atrair o interesse do setor privado, equilibrando as áreas mais rentáveis com outras menos atrativas.

Segundo especialistas, a regionalização é essencial para que o saneamento avance de forma equilibrada, evitando que cidades menores ou isoladas fiquem à margem dos grandes projetos de concessão. “Toda a lógica do saneamento é conseguir essa regionalização, aglutinando municípios para prestar o serviço de forma eficiente. É mais complexo, mas é o caminho que traz escala e atratividade”, afirma a diretora-executiva da Abcon-Sindcon.

A expectativa é que 2026 e 2027 marquem uma nova fase de leilões, com foco em projetos regionalizados e municípios de médio porte. “Além da continuidade dos leilões em fase de estudo, veremos muitas obras sendo executadas nos próximos anos”, diz Firmino. “Os contratos assinados agora têm metas e desembolsos programados até 2033. O que precisamos é de regulação eficiente e estabilidade política.”

Pretto, do Trata Brasil, também acredita que o cumprimento da meta de universalização depende de priorização. “O Brasil tem 5.570 municípios. Muitos já universalizaram; outros ainda estão parados. Há cerca de 6,7 milhões de pessoas em municípios com contratos irregulares. Se o tema não for priorizado, existe o risco real de não cumprirmos o prazo de 2033.”

Apesar das incertezas, o consenso entre os especialistas é que o saneamento se tornou um dos pilares da infraestrutura nacional. “O setor está atraindo muito investimento e vivendo um ciclo virtuoso”, afirma Dias. O Ministério das Cidades, por sua vez, afirma que “continuará apoiando os Estados, municípios e prestadores públicos, com recursos do Orçamento Geral da União e do FGTS [Fundo de Garantia do Tempo de Serviço], em especial nas áreas menos atrativas”.

Fonte: Valor Econômico