Setor vive “boom” de leilões e investimentos privados; estudo aponta o que leva empresas a pleitear ajustes contratuais

As concessões e PPPs (parcerias público-privadas) de saneamento básico têm destravado investimentos bilionários no setor, mas os pedidos de reequilíbrio econômico-financeiro apresentados pelas operadoras de água e esgoto servem como um alerta sobre a execução dos contratos.

Um estudo inédito da Manesco Advogados analisou 13 casos levados pelas concessionárias às agências reguladoras estaduais e municipais para entender o que tem sido motivo de discórdia.

O levantamento contempla experiências em Alagoas, Goiás, Pernambuco, Rio de Janeiro e Ribeirão Preto (SP). São contratos celebrados antes e depois do novo marco legal de 2020.

Sancionada há cinco anos, a Lei 14.026 determinou a universalização dos serviços de abastecimento de água e de tratamento de esgoto até 2033.

De acordo com Wladimir Antonio Ribeiro, sócio da Manesco Advogados, os pedidos de reequilíbrio nas concessões e PPPs de saneamento podem ser agrupados em pelo menos três categorias:

  • Informações inverídicas sobre o nível de atendimento das redes. Há distorção entre o que apontavam os estudos pré-leilão e a realidade efetivamente encontrada pelas concessionárias na infraestrutura de abastecimento de água e coleta/tratamento de esgoto. Na prática, os índices de coleta de esgoto ou de perdas no fornecimento de água são muito diferentes do que informavam os estudos, gerando mais custos e menos receita às concessionárias.
  • Erros de projeto ou mudança no cronograma de execução dos investimentos. Obras que não estavam originalmente previstas nas obrigações contratuais precisam ser assumidas pelas concessionárias privadas ou há necessidade de alteração do calendário dos projetos.
  • Defasagem em reajustes tarifários. Pressionado politicamente, o poder concedente (estados ou municípios) segura reajustes para evitar “tarifaços” que representem desgaste junto aos eleitores. As agências reguladoras se veem, então, compelidas a analisar pleitos de mudanças contratuais — já que a receita das concessionárias diminui.

“O que chama a atenção são menos os números e mais as razões dos pedidos. Se tivéssemos melhores estudos de engenharia [antes dos leilões], mais da metade dos pedidos teria sido evitada”, afirma Wladimir Ribeiro.

Segundo ele, os problemas das concessões licitadas a partir de 2020 se assemelham aos problemas identificados em contratos anteriores.

A Abcon (associação das concessionárias privadas de saneamento) afirma que, desde a entrada em vigência do novo marco legal do setor, houve 60 leilões. Eles destravaram R$ 181,6 bilhões em novos investimentos.

Nos cálculos da entidade, cerca de um terço dos municípios brasileiros (1.820) já tem serviços de saneamento operados pelo setor privado.

A diretora-presidente da Abcon, Christianne Dias Ferreira, avalia que pedidos de reequilíbrio em contratos de longo prazo, quando amparados tecnicamente, fazem parte do negócio e não comprometem a viabilidade dos projetos.

“É [algo] esperado em contratos de longo prazo e em um setor em expansão. Os pontos citados pela Manesco, como divergências entre diagnóstico e realidade operacional, são comuns em setores de infraestrutura”, diz a executiva.

“No saneamento, a natureza subterrânea da infraestrutura impõe desafios adicionais à fase de estudos. Trata-se de um setor que avança técnica e institucionalmente à medida que os projetos evoluem”.

Uma das peculiaridades no saneamento é que, diferentemente de setores como energia elétrica ou aeroportos, não há uma agência nacional que faz a regulação e a fiscalização de forma unificada.

A titularidade dos serviços é das prefeituras, o que faz com que os contratos sejam geridos de modo pulverizado, por meio de órgãos reguladores municipais ou estaduais (em caso de blocos de municípios).

“Há exemplos positivos de análises dos pleitos, mas ainda enfrentamos situações de demora ou instabilidade decisória”, pondera Christianne.

“Por isso, é fundamental fortalecer a regulação com mais capacitação, estabilidade institucional e alinhamento às normas de referência da ANA”, completa a presidente da Abcon, referindo-se à Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico, que passou a emitir normas de referência para as demais reguladoras no âmbito subnacional.

“O reequilíbrio é um instrumento legítimo de preservação contratual e deve ser analisado com critérios técnicos e previsíveis, garantindo segurança jurídica e continuidade dos investimentos”.

Armadilha da outorga.

O advogado Wladimir Ribeiro, da Manesco, observa que a meta de universalização dos serviços até 2033 — ponto central da Lei 14.026 — incorporou um objetivo traçado inicialmente no Plansab (Plano Nacional de Saneamento Básico), mas com um mecanismo “antidescumprimento” da lei: a interrupção na transferência de recursos e financiamentos federais, como dinheiro do FGTS ou do OGU (Orçamento Geral da União), para o ente federativo que estiver em linha com essa obrigação.

“Desde então, os contratos já existentes foram aditados para prever essa meta. E os novos contratos passaram a prevê-la desde o início”, diz Ribeiro.

“Porém, tudo foi realizado às pressas e sem estudos suficientes. Logo, emergem pedidos de reequilíbrio porque os novos investimentos, para cumprir as metas, se mostram muito superiores às estimativas iniciais”, acrescenta.

Um dos problemas mais frequentes, segundo o advogado, é a outorga estabelecida nos leilões de saneamento.

Muitas vezes os estados e municípios responsáveis pela licitação fornecem dados que não conferem posteriormente com a realidade, com redes menores de água e esgoto, mas as falsas premissas puxam para cima os valores mínimos de outorga.

Quando os blocos de saneamento no Rio de Janeiro foram leiloados, por exemplo, os estudos indicavam que o município de Duque de Caxias tinha 40% de cobertura de esgotamento sanitário e que a coleta de dejetos em Belford Roxo alcançava 38% da população.

Em ambos os casos, a concessionária alega ter encontrado redes que cobriam 16% das cidades.

Em municípios como Magé, Nilópolis, Queimados e Cambuci, os números informados variavam de 33% a 87%. Na realidade, a cobertura era inexistente.

Wladimir Ribeiro afirma que as tarifas de água e esgoto precisam ser capazes de remunerar os investimentos previstos em contrato.

Se o volume de investimentos aumenta, em razão da falta de infraestrutura como informado nos estudos, as tarifas têm necessidade de subir mais.

“Quando a tarifa ultrapassa o patamar que representa a capacidade de pagamento dos usuários, existe uma tensão social, gera-se o risco de a população se revoltar. Depois de 2013 [quando o aumento das tarifas de transporte público deflagrou protestos em cascata], esse tema passou a ser politicamente mais sensível”, conclui o advogado.

Por isso, muitos pedidos de reequilíbrio econômico-financeiro que mexem com questões tarifárias acabam sendo represados nas agências reguladoras.

Matéria da CNN