Essa é, talvez, a base mais importante para reduzir o Custo Brasil

 

Um dos raros consensos entre academia, setor produtivo e governo é o de que insegurança jurídica e regulatória constituem entraves significativos aos investimentos. Há um grande grau de concordância sobre a necessidade de implementação das chamadas boas práticas regulatórias, como preconiza a Recomendação do Conselho de Política Regulatória e Governança da OCDE.

Entre as 12 diretrizes da Recomendação, uma é particularmente crítica para o contexto brasileiro: promover a coerência regulatória entre os diferentes níveis de governo, evitando duplicação ou conflito de normas. Essa é, talvez, a base mais importante para reduzir o Custo Brasil e alavancar os necessários investimentos para ampliar a qualidade e o acesso a bens e serviços públicos.

Coerência regulatória, contudo, não significa apenas evitar contradições. Trata-se de assegurar que o conjunto de regras sobre um mesmo tema esteja organizado para alcançar um objetivo comum. Em outras palavras, é um resultado, não um processo. A pergunta para a qual se busca uma resposta positiva é: essas normas e práticas, juntas, nos levam aonde queremos chegar?

O problema é que “aonde queremos chegar” nem sempre é claro. As demandas sobre o Estado são múltiplas e, muitas vezes, conflitantes entre si. O Tribunal de Contas da União, no Acórdão 1.916/2025, oferece um exemplo interessante dessa tensão e da necessidade de coordenação entre órgãos reguladores.

O caso envolve uma proposta de alteração, por parte do Ibama, do hidrograma que estabelece a vazão permitida à Usina Hidrelétrica de Belo Monte. A alteração, motivada por fatores ambientais, teria impactos profundos no funcionamento da usina, que poderia ficar sem produção de energia entre os meses de janeiro a abril.

Isso traria consequências de maior despacho de energia das termelétricas, aumento de tarifas e possível pedido de reequilíbrio econômico-financeiro da Norte Energia. Estimativas citadas pelo TCU[1] sugerem impacto financeiro de R$ 771 milhões apenas em janeiro de 2021 e, caso o hidrograma provisório seja mantido, há potencial de aumento médio nas contas de luz de 1,7%.

Considerando os impactos sistêmicos para o setor elétrico, os ministros do TCU recomendaram ao Ibama intensificar o diálogo técnico com os principais atores do setor (Aneel, EPE, ONS e Ministério de Minas e Energia). O acórdão cita a política de governança pública, especificamente sua diretriz de “articular instituições e coordenar processos para melhorar a integração entre os diferentes níveis e esferas do setor público, com vistas a gerar, preservar e entregar valor público”.

Em última instância, o episódio ilustra como a coerência regulatória depende da capacidade de coordenação entre instituições cujas decisões afetam diretamente não só as atribuições e objetivos umas das outras como o desenvolvimento do país.

Talvez por isso, embora a Recomendação da OCDE enfatize o resultado, isto é, a coerência efetiva das normas, sua avaliação se apoia na existência de mecanismos[2] destinados a promovê-la, como comitês de coordenação entre níveis de governo, fóruns para troca de boas práticas e programas de fortalecimento da capacidade regulatória.

No Brasil, temos alguns desses mecanismos, sendo o Programa de Fortalecimento da Capacidade Institucional para Gestão em Regulação (PRO-REG), o Programa de Aprimoramento da Qualidade da Regulação Brasileira (QualiReg) e o Congresso Brasileiro de Regulação três exemplos expressivos.

Na prática, todavia, convivemos em um cenário no qual uma cascata de normas é gerada a partir de leis, decretos ou resoluções de colegiados, exigindo ações com alto potencial de sobreposição ou conflito nas três esferas de governo.

Um exemplo de cascata regulatória ocorreu no setor de fabricação de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs). O Ministério do Trabalho alterou os requisitos técnicos para certificação desses produtos. Como consequência, os laboratórios que realizam os ensaios para demonstrar a conformidade dos produtos aos requisitos precisaram realizar investimentos, comprar equipamentos novos e capacitar seus colaboradores.

Além de se capacitar para realizar os novos ensaios, os laboratórios dependem de uma acreditação no Inmetro para realizar as novas atividades. Quando a regulação entrou em vigor e as empresas produtoras de EPIs precisaram da nova certificação, muitos laboratórios não haviam concluído seus investimentos, outros estavam na fila, aguardando o processo de acreditação do Inmetro. As empresas, sem acesso à certificação necessária para a venda legal de seus produtos, recorreram ao ministério para solicitar uma dilação de prazos. Os laboratórios, que já haviam realizado os investimentos, ficaram com capital parado.

Esse exemplo, como o anterior, ilustra como uma decisão de um regulador (Ibama e MTE) afeta outros reguladores (Aneel e Inmetro) e quais são algumas das consequências práticas da falta de alinhamento entre eles. Diferem, no entanto, na magnitude dos impactos e, com isso, no esforço a ser dispendido na coordenação regulatória.

No caso dos EPIs, tivesse o Inmetro sido acionado durante o processo regulatório, poderia ter se preparado para o fluxo de pedidos de acreditação e articulado com os laboratórios para que essa rede estivesse pronta para atender aos novos requisitos.

Como, então, podemos avançar?

Se coerência é um resultado, a harmonização de normas e práticas em torno de um objetivo comum deve ser avaliada como tal, e não apenas a partir dos mecanismos para promovê-la.

Em primeiro lugar, portanto, é preciso definir e medir os conceitos adequadamente. Devemos perguntar: as normas federais, estaduais e municipais sobre um mesmo tema ou que afetam um mesmo setor ou atividade convergem para o mesmo objetivo estratégico? Esse objetivo está claramente definido? Existem conflitos que o impedem de ser alcançado?

Em segundo lugar, devemos fortalecer os mecanismos de coordenação existentes, para que durante a elaboração de uma regulação, todos os órgãos e entidades da administração envolvidos na respectiva política regulatória possam manifestar-se, prevenindo conflitos futuros.

Nos Estados Unidos, por exemplo, normas regulatórias de alto impacto (significant regulatory actions) passam por um processo de revisão interagências no qual o OIRA (Office of Information and Regulatory Affairs), órgão de supervisão regulatória ligado à presidência, distribui as propostas de regulação a ele submetidas para os demais reguladores potencialmente interessados ou diretamente envolvidos na implementação daquela política regulatória.

Em terceiro lugar, é necessário identificar os custos da incoerência, como o tempo e os recursos que empresas e cidadãos gastam navegando por normas conflitantes, processos sobrepostos ou exigências redundantes.

Em quarto lugar, é fundamental identificar corretamente a norma a montante, que dá início à cascata regulatória e gera a necessidade de ação dos demais reguladores, à jusante, nas diferentes esferas de governo. Para esse tipo de norma, a adoção de boas práticas regulatórias, como a AIR, não deveria ser passível de dispensa.

Pelo contrário, são decisões que demandam maior esforço analítico, uma vez que envolvem problemas de maior complexidade, com amplitude maior de alternativas de ação e diferentes possibilidades de implementação e fiscalização. É na AIR que se identificam as partes afetadas, incluindo outros reguladores, o que permite incorporá-los ao processo de discussão e elaboração da norma, reduzindo incoerências e prevenindo dificuldades de implementação.

Por fim, coerência não se restringe à fase de elaboração normativa. Como lembra o professor Cary Coglianese, devemos falar em regular (verbo), e não regulação (substantivo). Trazendo para o nosso contexto, devemos encarar a regulação como o ciclo regulatório. É preciso avaliar a coerência desde o planejamento até a implementação e fiscalização.

Além disso, é essencial adotar estratégias de monitoramento e avaliação que permitam verificar se os resultados pretendidos estão sendo alcançados e, caso não estejam, identificar em qual elo da nossa cascata regulatória se encontra o problema.


[1] Segundo cálculos do Operador Nacional do Sistema (ONS).

[2] Ver OECD (2021), OECD Regulatory Policy Outlook 2021, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/38b0fdb1-en.

Artigo do JOTA