Os investimentos em saneamento básico vêm crescendo depois que o marco legal editado em 2020 abriu espaço para a atuação do capital privado na área. Mas o ritmo ainda deixa a desejar e coloca em risco a esperada universalização dos serviços em 2033.
Em pleno início da pandemia, em julho de 2020, o governo Bolsonaro aprovou o Marco Legal do Saneamento com o objetivo de, em 2033, conseguir que 99% da população tenha acesso a água potável, e 90% à coleta e tratamento de esgoto. Diante da falta de recursos públicos para isso, foi estimulada a atuação do capital privado na área por meio de concessões e parcerias. Por outro lado, foram abolidos os contratos firmados anteriormente sem licitação entre municípios e empresas estaduais de saneamento.
Algumas regras foram flexibilizadas no terceiro mandato de Lula, beneficiando as empresas públicas, mas a estratégia vem surtindo efeito. Se o setor privado administrava o saneamento em 7% dos municípios brasileiros em 2020, neste ano o percentual deve atingir 39,4% se todos os leilões previstos forem bem-sucedidos, por meio de concessões e parcerias público-privadas (PPPs).
Dois grandes leilões já foram realizados: o de três blocos no Pará e o de duas parcerias no Espírito Santo. Mais três licitações relevantes devem ocorrer até o fim de dezembro, segundo dados da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Água e Esgoto (Abcon). Uma delas, marcada para o próximo mês, é a do Bloco C do Pará, em sua segunda tentativa de atrair interessado, que prevêR$ 3,6 bilhões em obras. Serão leiloados em Pernambuco outros dois lotes, que somam R$ 18,9 bilhões de investimentos.
Há projetos relevantes agendados também para o próximo ano, que podem movimentar quase R$ 45 bilhões. A maior fatia é a do governo paulista que, em quatro PPPs previstas, pode mobilizar R$ 30 bilhões para obras. Há ainda uma concessão em Rondônia, de R$ 4,4 bilhões, a de Goiás, com R$ 5,5 bilhões; e a do Rio Grande do Norte, com mais R$ 4,6 bilhões.
Se essa programação para 2026 se concretizar, a participação privada no saneamento poderá chegar a 49,7% dos municípios brasileiros, ou seja, quase a metade, o equivalente a 2.766 cidades. A entrada do capital privado no saneamento começou a acelerar em 2023, quando passou de 9,2% para 15,7% dos municípios, saltando para 29,6% em 2024, com previsão de aumento de mais 10 pontos percentuais neste ano e no próximo, ao ritmo de quase 600 municípios por ano.
Apesar disso, o ritmo de investimento é insuficiente para atingir a universalização no prazo estabelecido como meta. A 17 edição do Ranking do Saneamento, elaborado pelo Instituto Trata Brasil (ITB) em parceria com a consultoria GO Associados, constatou que apenas 12 municípios dentre os mais populosos investem acima da média considerada necessária para cumprir o prazo. Essa média foi fixada em R$ 223,82 por habitante pelo Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab).
De acordo com o ranking, os 20 municípios com melhores indicadores registraram investimento médio anual deR$ 176,39 por habitante entre 2019 e 2023, cerca de 20% abaixo do necessário para a universalização apontado pelo Plansab. Mas os 20 municípios com piores indicadores registraram investimento anual médio de R$ 78,40 por habitante, 65% abaixo do nível médio necessário para a universalização.
Na média nacional, 83,1% da população tem acesso a água e 55,2% a coleta de esgoto. Diante desses dados e do atual ritmo de investimentos, há especialistas céticos sobre o cumprimento da meta.
Uma das piores estimativas é a do Centro de Liderança Pública (CLP), que calcula que o Brasil deve atingir a universalização somente em 2070.
Vários fatores indicam que a previsão pessimista pode ter algum fundamento. Um dos obstáculos para a expansão do saneamento é a alta dos juros que encarece o custo do dinheiro para os investimentos. Com a taxa Selic a 15% ao ano a situação já não estava favorável e pode piorar se for confirmada a tributação das debêntures incentivadas, que têm sido importante instrumento de financiamento da infraestrutura.
Outras mudanças legislativas preocupam o setor e podem causar uma onda de revisão de contratos com pedidos de reequilíbrio. Uma delas é a lei de tarifa social que ampliou o direito às isenções. A outra é a reforma tributária, que elevou a tributação sobre os serviços de abastecimento de água e esgoto. Por outro lado, os empreendimentos de saneamento foram incluídos no Marco do Licenciamento Ambiental e serão dispensados de licenciamento até o atingimento das metas de universalização. A partir de então, poderão obter a Licença por Adesão e Compromisso (LAC), mecanismo que simplifica e agiliza a emissão de licenças.
Como o prazo de cumprimento da meta de universalização dos serviços de saneamento é uma incógnita, a vantagem na legislação ambiental pode ser duradoura. Mas a perda para a população é certa se a meta não for atingida.
Fonte matéria/imagem: Valor